Creta, a ilha indomável

Viagens com Livros

Na obra Liberdade e Morte, Nikos Kazantzákis conta-nos a vida na ilha de Creta (Grécia) durante a ocupação turca. Memórias fáceis de recordar ainda hoje, mesmo sendo esta uma das mais turísticas ilhas do Mediterrâneo.

Monumento ao cretense livre

Creta Selvagem

É preciso sair da costa, penetrar nos montes hirsutos de arbustos ressequidos e nas aldeias, vigiadas por capelinhas brancas de cúpula azul empoleiradas nos cumes, para encontrar a Creta selvagem e irredutível de Liberdade e Morte (Freedom and Death). Com a costa norte completamente conquistada pelo turismo de massas, só o interior e a costa sul guardam alguns oásis de sossego e tradição, como as pequenas aldeias de Loutró ou Agýa Rouméli, acessíveis apenas de barco ou a pé, o que torna o turismo bastante menos previsível. Mas é das montanhas interiores que descem os cretenses de antigamente, que têm sérias parecenças com o herói desta história, o capitão Michales, “de longa camisa negra, porque a Creta escravizada usava luto”: velhos homens de negro, grandes bigodes grisalhos, alguns com as típicas botas de cano alto e o lenço de rede na cabeça, um misto de pastor e de corsário. Já são poucos, mas fazem excursões pela ilha a visitar as ruínas, as igrejas e muralhas venezianas, e também as praias que nunca pensaram em frequentar, apreciando e criticando o turismo enquanto espiam pelo canto do olho as turistas nórdicas, loiras e seminuas.

A aldeia de Megalokastro, palco deste romance, não consta do mapa de Creta mas é “inteiramente rodeada por muralhas e desafiadoras torres com seteiras, construídas pelos seus senhores cristãos no apogeu da antiga Veneza, e embebidas em sangue veneziano, turco e grego“, descrição que assenta ainda hoje a muitas cidades da ilha, de Sitiá a Khánia. Fica no sopé do monte Strumbulas, junto ao monte Psilorítis, o mais alto de Creta, e é do cimo dos seus 2.454 metros que Barba Jannis, o vendedor de sorvetes, trazia a neve e o gelo com que os fabricava durante a estação quente. Este era o único homem livre da aldeia, que não temia nem cristãos nem turcos, “praguejava e blasfemava, ora contra Cristo, ora contra Maomé, ora contra o sultão”. A tensão entre invadidos e invasores termina num banho de sangue, e relata uma das mais dramáticas épocas da longuíssima história da ilha, que começa com o Império Minóico, importante centro do comércio marítimo no Mediterrâneo mais de dois mil anos antes de Cristo, e termina com o regresso de Creta à Grécia, a “terra-mãe”, já depois da II Guerra Mundial.

Uma das mais importantes riquezas da ilha, convenientemente explorada pelo turismo, é justamente a sua história. Ninguém vai a Creta sem visitar as ruínas do palácio de Knossos, nada menos que a residência do rei Minos e da sua corte, convenientemente situado nas proximidades de Iráklion. Mas há muitos mais vestígios da atribulada passagem dos séculos, como os da extensa cidade romana de Górtys, e os complexos palácios minóicos de Festós ou Ayía Triádha, de onde provém grande parte dos tesouros guardados no excelente museu de Iráklion.

Várias são as cidades que exibem marcas do império de Veneza, como as impressionantes muralhas de Iráklion, onde está sepultado Nikos Kazantzkis, ou muitos dos portos, palácios e arsenais, todos assinalados “com o leão alado de Veneza na fachada”. Mas também não faltam as odiadas lembranças da presença turca, com alguns dos minaretes das antigas mesquitas – como a dos Janízaros, em Khania – a erguerem-se bem acima do casario baixo de cidades costeiras de Réthimno, Sitiá e Khánia. Pelas ruas estreitas das zonas antigas desfilam casas ao estilo veneziano, com varandas e gelosias de madeira, agora transformadas em elegantes restaurantes, cafés e lojas para turistas, combinados com arcaicas colunas helénicas e romanas, à mistura com fontes venezianas e turcas, velhas mesquitas e a ocasional sinagoga. Mas no coração dos cretenses nada suplanta o mosteiro de Arkádi, ou melhor, a sua versão moderna, uma vez que o original explodiu com todos os que se lá tinham abrigado durante uma revolta, num suicídio colectivo que também tirou a vida às centenas de turcos que participavam no assalto final ao mosteiro. Este sacrifício e o seu local ficaram como símbolo da resistência da ilha a qualquer invasão, e só o louco Barba Janis pode aludir a este episódio sangrento sem se fazer punir pelos otomanos.

Para o Pachá local, turcos e gregos “podem viver como irmãos; os gregos trabalham, os turcos comem, e ambos levam uma vida feliz” – mas não era essa a opinião de todos os que lutaram durante as sucessivos levantamentos; “Ao princípio aconteceu só uma vez por geração, mas mais tarde, depois do grande levantamento de 1821, o clamor tornou-se mais forte, a indignação cresceu. O coração de Creta engoliu por algum tempo o seu sentimento de injustiça, o seu sofrimento, até que se encheu e transbordou. (…) Explodiu em 1866, no tempo de Arkádi, levantou-se outra vez em 1878 e caíu de novo por terra. Tornou a engolir injustiça e infelicidade e agora, no começo de 1889, o coração de Creta estava outra vez quase a transbordar”.

A ilha é um lugar de forte personalidade; “é um animal selvagem; não vamos acordá-lo – ele devora homens!”, dizia um dos turcos ao seu Pacha. O seu coração montanhoso cria gente forte e orgulhosa, que preza a sua cultura, e luta agora para que o seu modo de vida não desapareça completamente, desgastado pelo turismo de massas. Creta já entrou definitivamente na lista dos “bronzódromos” europeus e algumas praias têm, muitas vezes em vão, cartazes que pedem que se respeite a gente local, não praticando o nudismo, não dormindo na praia, etc. Nas pequenas igrejas ortodoxas, papas barbudos e vestidos de negro pedem às turistas que não entrem demasiado despidas num local onde as mulheres ainda usam saias compridas e cabelos tapados. Afastando-nos da costa norte, onde os prédios já conseguem esconder o mar durante quilómetros, são cada vez mais frequentes as aldeias onde a sesta e a oração do fim do dia são dois momentos a respeitar.

Para esquecer por uns dias a pressão do turismo e a sensação de estar numa ilha, procurem-se as isoladas gargantas de Samaria e o planalto de Lasithí, com os seus “campos preparados de fresco, alguns castanho-canela, outros negro-profundo. Aqui e ali, um grupo de oliveiras de ramos prateados, um cipreste solitário, uma fila de vinhas sem folhas (…)” – e uma profusão inesperada de moinhos de vento, que levam água aos campos minuciosamente cultivados. À sombra das latadas bebe-se o vinho local e o ouzo, licor forte e anisado, de sabor quente. Rodeados pelas montanhas onde se escondiam guerrilheiros como Fanúrios, “de cara feroz e cheiro a queijo e cabras”, a conversa é fácil e os entardeceres são mornos e relaxantes. Falamos das oliveiras, dos rebanhos, dos filhos a estudar ou a trabalhar em Atenas. É gente simples mas sem complexos, com um orgulho mal disfarçado que lhes vem da história, da bela ilha à qual pertencem – de onde? É verdade que “uma águia veria belezas de admirar em Creta. A maneira como o seu corpo bem unido se elevou e equilibrou, dourado pelo Sol, o modo como as suas costas brilham, umas vezes com areia branca, outras com simples promontórios vermelho-sangue. (…) as grandes quintas, os mosteiros e as pequenas igrejas cintilando contra a rocha cor de ferrugem escura, ou profundamente plantadas no solo.” Uma beleza desafiadora e irredutível, temperada pelo conforto dos resorts turísticos que um “javali selvagem” como o capitão Michales nunca aprovaria.

Nikos Kazantzákis, escritor e filósofo

Kazantzákis nasceu em Iráklion, a “capital” de Creta, em 1883, ainda a ilha fazia parte do Império Otomano. Durante uma das muitas revoltas cretenses contra a ocupação turca, a família mudou-se para a ilha de Naxos, onde Nikos estudou numa escola de Franciscanos, seguindo depois o curso de Direito em Atenas. Aí começou a trabalhar como jornalista e a escrever os seus romances, antes de iniciar longas viagens pela Europa e Ásia, a partir de 1907. Tentou gerir uma mina no Peloponeso, estudou budismo em Viena e juntou-se a um grupo de intelectuais radicais em Berlim. Passou os anos da ocupação alemã no seu país natal, foi ministro sem pasta e trabalhou para a UNESCO. Finalmente, estabeleceu-se em Antibes e morreu em 1957, depois de mais uma viagem à China e ao Japão. No seu túmulo, em Iráklion, rezam as seguintes palavras: “Não espero nada, não temo nada, sou livre.”

A obra de Kazantzákis, para além dos esforços formais de aproximação aos grandes épicos gregos, como as 33.333 linhas da sua Odisseia, escrita em 1938, inspira-se sobretudo em pessoas comuns, tratadas e engrandecidas como heróis. Para além de demonstrarem uma profunda ligação ao seu país e respectiva cultura, as personagens épicas de Kazantzákis lembram-nos que a vida é uma luta constante mas que, mesmo assim, é possível manter vivos grandes sentimentos como a coragem, a amizade, o amor e a cumplicidade. Diz-se que é o seu pai que retrata em Liberdade ou Morte, na pele do capitão Michales, e é o seu sócio na exploração falhada de uma mina, George Zorbas, que lhe inspira o clássico Zorba, o Grego. Apesar da grande quantidade de romances, novelas, peças de teatro, artigos jornalísticos e relatos de viagens que produziu, é a adaptação de dois dos seus romances ao cinema que não deixam esquecer o seu nome: o já citado Zorba, o Grego, e A Última Tentação de Cristo, que lhe valeu ficar na “lista negra” do Vaticano e ser excomungado pela igreja ortodoxa grega.

Adaptado de texto publicado no magazine Fugas, do jornal Público


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