Pela Patagónia, no expresso do fim do mundo

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A palavra Patagónia remete para imagens de pampas infinitas de erva dourada, extensões vazias, povoadas apenas por animais fugidios e raras estancias (quintas) de gado, separadas entre si por muitos quilómetros de vento e planuras. Nem todos sabem que este enorme território esconde montanhas nevadas, lagos gelados, glaciares e – ainda mais surpreendente – grandiosos fiordes verde-musgo, por onde o mar entra na terra envolvido em permanentes nuvens de chuva. A primeira imagem corresponde à Patagónia argentina; a segunda, à Patagónia chilena. Divididas pela cordilheira andina, que retém toda a humidade do lado do Chile, são duas faces do mesmo fim do mundo, inóspito e irresistível.

A Patagónia segundo Luís Sepúlveda

O que Luís Sepúlveda nos conta, em Mundo do Fim do Mundo e Patagónia Express, são pequenas histórias simples que nos dão a conhecer bem mais do que as paisagens extremas deste continente: a saga dos primeiros patagónios, os caráteres moldados por uma meteorologia inclemente e um futuro ameaçador, a nível ambiental.

A falta de água do lado argentino, a dificuldade de acesso do lado chileno e um clima extremamente duro de ambos os lados dos Andes associaram-se para criar condições ideais de isolamento, propícias ao desterro e à fuga; nos anos setenta, Pinochet enviava para a região os indesejáveis políticos; os assaltantes americanos Butch Cassidy e Sundance Kid escolheram a Patagónia argentina para construir o seu esconderijo. Não quer isto dizer que a população permanente seja constituída por desterrados, refugiados ou foragidos, mas sabe-se que a zona foi terra prometida para colonos galeses fugindo da repressão inglesa, alemães à procura de um refúgio depois da guerra, jugoslavos e polacos em busca de melhor vida; enfim, podemos sempre encontrar um Carlitos Carpinteiro como o de Patagónia Express, ou um Basco, como o de Mundo do Fim do Mundo. O que todos têm em comum, sem que isso os transforme em empedernidos lobos-do-mar, é uma grande independência – todos eles são verdadeiros resistentes.

O barco que tomámos na cidade chilena de Puerto Montt chamava-se Calbuco. Partia de madrugada em direcção ao sul, com passageiros e toda a carga necessária à vida nestas paragens. Dirigia-se a Puerto Chacabuco, quarenta milhas continente adentro, no fim do grande fiorde de Aysén. No mar alto, “a superfície parece uma chapa metálica de onde o Sol nascente extrai reflexos prateados.” Considerámo-nos com sorte por o mar estar calmo, apesar de os homens do mar gostarem do fiorde com ondas, porque “no movimento da água reconhecem os traidores bancos de areia e os pontiagudos recifes que se escondem sob a superfície.”

Aycara, Quellón, e deixamos para trás a ilha de Chiloé. “Depois, o país divide-se em milhares de ilhas, ilhotas, canais, braços de mar, até às proximidades do Pólo Sul e, na parte continental, as cordilheiras, os montes de neve acumulada (ventisqueros), os bosques impenetráveis, os gelos eternos, as lagoas, os fiordes e os rios caprichosos impedem o traçado de caminhos ou de linhas férreas.” Do alto das montanhas escorrem longas cascatas brancas e o nevoeiro não deixa ver os cumes.

O Calbuco deslizava quase em silêncio sobre um mar de vidro, só animado pelas competições de velocidade entre os golfinhos. Melinka, S. Domingo, Melimoyu, Barranco – tudo aldeias quase invisíveis, onde o barco mal ousava atracar. Da floresta húmida saíam botes que se encarregavam de levar tudo para terra: mantimentos, correio, um colchão, mobília variada. De vez em quando uma família esperava um passageiro, alinhada junto à costa. Na ilha Toto, casinhas de madeira mantinham um equilíbrio precário sobre estacas, a igreja no alto, o pequeno molhe balouçante enterrado no mar. Puyuhuapi, Puerto Cisnes, Puerto Amparo, Puerto Aguirre – latas de tinta, uma bicicleta, pacotes de massa, frascos de maionese, uma família com três crianças.De inverno, quando não há barcos, ficam todos por sua conta e risco. O estradão entrecortado de fiordes, que o exército tenta abrir nestas paragens, ainda é menos fiável do que o mar.

Mesmo assim, resolvemos viajar também por terra. Deambulámos por Punta Arenas e Puerto Natales de onde, durante o Inverno, é comum só se conseguir sair atravessando a fronteira com a Argentina. Coisa normal, como explica o marinheiro Nilssen: “O senhor pode ir até ao Beagle e perguntar às focas, aos corvos-marinhos e aos pinguins (…) se se sentem chilenos ou argentinos. A soberania é um lenço inventado para os tropas secarem a baba.” Dos dois lados viviam os patagones, dos dois lados foram chacinados pela ganância dos rancheiros. Todos os seres vivos que ocupavam território ou partilhavam os pastos das grandes estâncias sofreram a mesma sorte: caçadas intensivas, que (quase) os levaram à extinção – a mãe do marinheiro Nilssen é uma das mais exemplares e tristes histórias dos índios patagónios.

O Patagónia Express, o “comboio de ovelheiros” que atravessava a Patagónia argentina desde a fronteira com o Chile até Rio Gallegos, na costa atlântica, já não existe. Mas deste lado as cidades ainda parecem verdadeiros entrepostos de colonos, as estátuas e ruas ainda têm o nome dos generais e heróis da aventura expansionista por este grande deserto. Algumas das mansões dos fazendeiros continuam de pé, e os museus, com as suas carroças antigas e pequenos comboios a vapor, transportam-nos para um faroeste austral, onde o vento forte faz rebolar os arbustos secos do calafate e cobre tudo com uma camada de pó amarelo. A época das grandes estancias ovelheiras já passou, e o novo Eldorado patagónio é o petróleo; a mesma paisagem desértica está agora pontuada pelas cores garridas das cegonhas mecânicas, que extraem a nova riqueza do solo.

Do lado chileno, os edifícios lutam contra o musgo e a chuva, numa desafiadora ocupação territorial que tem de ser renovada periodicamente, sob pena da floresta entrar pelas aldeias dentro e cobrir os caminhos que as unem, em muito pouco tempo. O material mais utilizado na construção ainda parece ser a madeira, a não ser em cidades maiores, como Punta Arenas, que tem um inegável toque de arquitectura escandinava, com as suas casinhas quadrangulares pintadas de cores vivas para exorcizar o longo e rigoroso inverno austral. Aqui termina a cordilheira andina, uma apoteose de picos rochosos de “solidão aguçada pelos ventos”, cujos glaciares desabam com estrondo no Oceano Pacífico. Mais a sul, atravessando o estreito de Magalhães, atinge-se a Ilha Grande de Terra do Fogo, por onde se prolonga a paisagem desoladora destes fins-de-mundo. O inverno começa em março e termina em setembro, e tudo é forçosamente condicionado por esta falta de luz solar – as profissões, a vida social, os caráteres. E também aqui, a divisão da ilha em duas por uma fronteira não é mais do que uma enorme incongruência.

A disputa de território entre a Argentina e o Chile já teve épocas mais acesas; o que nunca terminou foi a disputa entre o homem e o resto dos animais. Neste momento, para além da continuada desflorestação com vista a aumentar os pastos, para além dos barcos-fábrica japoneses e russos que fazem desaparecer golfinhos e baleias-piloto, também começa a sentir-se o excesso de viveiros de salmão; além de altamente poluentes, vieram alterar o olhar dos locais sobre os lobos-marinhos, que são cada vez mais vistos como predadores indesejáveis e abatidos a tiro. Luís Sepúlveda parece sugerir que o nome de “fim do mundo” pode ter mais de uma leitura.

Luís Sepúlveda

Nasceu em Ovalle, no Chile, em 1949. Além de conhecer muito bem o seu próprio país, viajou intensamente pela América Latina e pela Europa. Primeiro fê-lo como exilado político, depois de ter sido preso pelo governo de Pinochet; ultimamente fá-lo por opção, como escritor, diretor de teatro, jornalista e membro activo do Greenpeace. Tem vivido com a família na Europa, entre a Alemanha e a Espanha (Astúrias). As preocupações ecológicas, as viagens e a busca de adaptação a novos lugares são linhas muito fortes nas suas obras. Ecologista e humanista, o escritor conta histórias simples e curtas, de pessoas e de animais, onde os sentimentos se sobrepõem à fantasia. Em português podemos ler, entre outros, O Velho que Lia Romances de Amor, Mundo do Fim do Mundo ou Patagónia Express, das edições ASA.

Adaptado de texto publicado no magazine Fugas, do jornal Público


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