O Grande Bazar Ferroviário, ou o Oriente visto de um comboio

Viagens com Livros

No livro O Grande Bazar Ferroviário, Paul Theroux diverte-se (e diverte-nos) contando as desventuras de um viajante no interior do comboio, ao mesmo tempo que nos dá uma ideia sobre a realidade dos países que atravessa. De Londres à China, no transiberiano e no transmongoliano, acompanhamos o escritor até ao Extremo Oriente dos anos 80.

Do Transiberiano ao Galo de Ferro

Os grandes clássicos do Transiberiano, Expresso do Oriente e os Comboio do Raj e Toy Train, na Índia, são metas metas essenciais para os amantes dos caminhos-de-ferro. E vá-se lá saber o porquê da paixão por comboios que consome tantos anglo-saxónicos! Há os que se deslocam a determinados locais para ver velhas locomotivas a vapor e, se possível, para viajar nelas, mas também há quem faça trainspotting, que é uma espécie de bird watching onde se observa comboios em vez de pássaros.

Paul Theroux também prefere este meio de transporte a todos os outros – a menos que se considere a canoagem como um meio de transporte – e, se não me engano, já andou nos acima citados, escrevendo sobre eles.

Nesta viagem, o comboio sai de Londres, passa por Paris, atravessa a Alemanha e a Polónia. Em Moscovo, um transiberiano leva-o até Irkutsk. Depois é a capital da Mongólia, Ulan-Batar e uma viagem com o Transmongoliano até Pequim. Daí, os comboios levam-no aos quatro cantos da China. O “Iron Rooster” (Galo de Ferro, Tie Gongji, em mandarim) era o nome dado pelos chineses ao comboio que faz a ligação entre a capital e a cidade de Urumqi, uma das mais longa das viagens por caminho-de-ferro no interior do país, “quatro dias e meio de montanhas e deserto.”

De facto, o mundo fechado dos comboios é tentador. Para um escritor que viaja, sobretudo. Em viagens longas, as pessoas que estão connosco vão-se revelando aos poucos, oferecendo um manancial de histórias e anedotas, até porque “quem se guarda para si próprio é considerado uma ameaça”. Paul encontra Blind Bob, o americano que viaja com carradas de papel higiénico, um casal de Macau – Manuel, um português e Verónica, chinesa – que lhe explica que pagode é uma palavra portuguesa, e que a viagem mais longa que é possível fazer de comboio começa em Portugal e termina em Hong-Kong. Da minha experiência, lembro-me sobretudo de uns companheiros de couchette chineses muito simpáticos, que jogavam a dinheiro e me ofereceram de tudo, desde chá e pêssegos a comprimidos para a garganta, terminando com uma lanterna. Um deles levou até o conceito de hospitalidade um bocadinho mais longe, tentando obrigar-me a comer um pepino logo de manhã.

No Transiberiano

Mas nos anos oitenta as coisas eram muito diferentes. Não tanto nos transiberianos, de Moscovo, cidade que “nos faz sentir muito pequenos”, até Irkutsk, na Sibéria. Os provodniks, funcionários do comboio, são agora mais simpáticos do que antes da glasnost, e as bebidas alcoólicas são proibidas. “A experiência do Expresso Transiberiano é ao mesmo tempo monotonia e beleza monacal: todo o dia, fora do ruidoso e apressado comboio, são bétulas e colunas ondulantes, e depois da escuridão exterior da noite na linha vemos mais bétulas e mais colinas ondulantes, e durante todo o dia também, até se parecer mais com papel de parede do que com paisagem – o tipo de papel de parede tão simples e repetitivo que acabamos por olhar mais para as junções do que para o design”. Atravessada a imensidão de estepe até Irkutsk, que lembra o far west americano, “não só as casas de madeira com pórticos mas a rua principal e os carros antigos e os tróleis, e os grandes armazéns que parecia que deviam chamar-se Bon-Ton Store”, atravessada a Mongólia, chega-se então a Pequim, que “tinha deixado de ser uma cidade imperial e começado a ser uma atracção turística.”

As maiores diferenças notam-se nos comboios chineses de longa distância, com os seus compartimentos de seis beliches sem porta, impecavelmente dirigidos por funcionários fardados que parecem ter sido treinados pelos Guardas Vermelhos: tanto podemos ser acordados às cinco da manhã por um que nos quer obrigar a levantar os pés para passar a esfregona, como por outro que quer mudar os lençóis da cama. Os bilhetes são trocados por uma ficha e geralmente o funcionário vem desfazer a troca quando nos aproximamos da estação. Cada vagão tem um samovar com água quente, onde os chineses enchem continuamente os termos de chá, que vão bebericando durante todo o dia. Felizmente, personagens como o sr. Fang, que Theroux teve que aceitar como acompanhante durante a viagem por imposição das autoridades chinesas, parecem já não existir. Agora o turista individual pode dirigir-se a qualquer estação e comprar o bilhete, viajando livremente e sem policiamentos. Por vezes existem exceções, como as distantes cidades de Lhasa, no Tibete, ou Kashgar, no Xinjiang, ambas zonas sensíveis são regularmente fechadas a estrangeiros, durante as insurgências populares a favor da independência.

Das janelas, impossível descrever o que se avista; o tamanho do país não se compadece com uniformidades: desde uma “cadeia de oásis ao longo do braço esquerdo da Rota da Seda”, plantações de chá, campos onde “Cada bocado plano livre estava cultivado. Feijões cresciam nas margens de terraços de arroz, havia couves nas encostas, espinafres e legumes na borda da estrada”, passando por vales com “montanhas molhadas a algumas milhas dali e por trás uma grandiosa crista de montanhas castanhas, e mais acima e ainda mais longe no horizonte distante, uma longa cordilheira de montanhas nevadas.” Aqui e ali, troços da Grande Muralha, que por vezes acompanhamos durante muito tempo. O comboio também nos dá tempo para pensar e, tal como Theroux, pergunto-me porque é que Marco Polo não mencionou a Grande Muralha, nem o facto de os chineses beberem chá todo o santo dia.

Paul Theroux, o escritor viajante

Paul Theroux é norte-americano, nascido em 1941 em Medford, Massachussets, e começou as suas viagens por Itália. Seguiu para África onde foi professor, daí para Singapura, onde se manteve no departamento de inglês da universidade durante três anos, seguindo-se dezassete anos na Grã-Bretanha. Acabou por voltar aos Estados Unidos, onde reside de momento. Toda a sua vida tem sido dedicada a viajar e escrever, sendo grande parte dos seus livros dedicada à subtil arte da viagem, e ao relato das suas peripécias. Neste momento, o autor divide o seu tempo entre Cape Cod e o Havai, com a sua segunda mulher.

Artigos jornalísticos, contos e novelas (Girls at Play, Jungle Lovers) foram-lhe saindo das mãos enquanto ganhava a vida como professor. Depois, os livros e as compilações de textos, como Travelling the World, foram-se tornando cada vez mais importantes. O que é característico do seu registo é que, muitas vezes, os seus companheiros de viagem e as pessoas que vai encontrando pelo caminho acabam por ter mais importância do que qualquer relato informativo ou ponto da situação a nível cultural, religioso, político etc. Os lugares vão-nos sendo contados indirectamente em pequenas históricas bem apimentadas de humor. Dois dos seus livros já passaram para o cinema, Saint Jack e A Costa do Mosquito, e várias das suas obras ganharam prémios internacionais, entre as quais esta mesma, Riding the Iron Rooster, que obteve o Thomas Cook Travel Book Award. Theroux também já obteve um prémio de literatura da American Academy and Institute of Arts and Letters. Uma boa parte da sua obra já se encontra publicada em Portugal, incluindo O Grande Bazar Ferroviário (The Great Railway Bazar).

Texto adaptado de artigo publicado na Fugas, do jornal Público.


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