Fernão Mendes Pinto: desventuras de um português na Ásia

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Mais do que um escritor, Fernão Mendes Pinto foi um emigrante aventureiro. Apesar da sua obra Peregrinação ser uma criação literária de centenas de páginas, com um ritmo narrativo rápido e adequado às peripécias mirabolantes que diz ter vivido, o que fica na memória do leitor não é o estilo da escrita, mas sim as histórias que nos conta. E podia contar muito mais, uma vez que andou pela Ásia durante vinte e um anos, em conjunto com outros aventureiros portugueses que daqui foram partindo no século XVI, para tentar a sorte em terras longínquas.

Monges junto ao templo Bayon em Angkor, Camboja

Fernão Mendes Pinto conta a sua Peregrinação pessoal

Fernão Mendes Pinto reuniu na sua Peregrinação descrições e detalhes geográficos raros relativos aos países que conheceu, e uma história que faz sumir reinos, fundir outros ou, simplesmente, lhes muda o nome, não nos permitindo seguir com rigor um périplo audacioso, muito apoiado em deslocações marítimas ao longo da costa do continente asiático, subindo rios, acostando a ilhas. Mas esquecendo este “efeito” ilusório, provavelmente criado pelo autor para melhor combinar a sua história pessoal com a de outros, não deixa de ser fascinante revisitar algumas das zonas mencionadas na obra.

Enquanto os locais onde mais vezes regressa – Goa e Malaca – pouca ou nenhuma atenção lhe merecem, a China é, de longe, o país ao qual mais páginas dedica, cheias de rasgados elogios à sua “grandíssima ordem e maravilhoso governo”, um império possante, exótico e com uma organização perfeita. A rigorosa e profundamente justa organização social chinesa vai da distribuição de trabalho por todos ao direito gratuito à justiça, passando por subsídios para “aleijados e gente desamparada” e lares para idosos que já não podem trabalhar, incluindo prostitutas. Como as coisas mudaram muito, o que nos resta em comum com as palavras de Fernão é o excesso de população do país que, “se não fosse a grande ordem e governo (…) sem dúvida se comeria uma com a outra” – constatação mais que evidente quando tentamos, por exemplo, utilizar os transportes públicos em Pequim…

Dois dos maiores atrativos turísticos da China moderna, a Cidade Proibida e a Grande Muralha, estavam na época em plenas funções. A primeira era a residência do imperador, que “nem é visto senão daqueles que o servem”, e a segunda, destinada a defender o país do ataque dos tártaros (mongóis), era constituída por cerca de “315 léguas” de muro, “na qual obra dizem que trabalharam contínuo 750.000 homens”, entre os quais ele próprio, condenado a trabalhos forçados com alguns colegas de infortúnio, por terem sido apanhados a mendigar depois de mais um naufrágio.

A sua passagem pela “Cochinchina”, território que abrangia, sem rigor de fronteiras, o que é hoje o Vietname, o Laos e o Camboja, foi sobretudo marítima. Fala-se dos juncos, que continuam a planar nas águas do golfo de Tonquim, das paisagens de “campinas rasas e grandíssimas de trigos, arrozes, cevadas e muitos legumes de muitas maneiras”; conta-se histórias de piratas e do reino hindu Champa, do qual restam os monumentos de Thap Cham e My Son, em território vietnamita.

A vizinha Tailândia, então conhecida por Sião, partilha agora a península malaia com a Malásia, onde abundavam “cobras e bichos”, como os “lagartos dos rios”. O clima chuvoso, com duas monções anuais, “tornavam a terra brejosa e alagadiça” – talvez por isso a capital da Malásia é Kuala Lumpur (à letra, estuário lamacento), mas alguns dos edifícios mais altos da Ásia fazem agora parte da paisagem urbana, substituindo os crocodilos e a floresta húmida. Mais a norte, a cidade tailandesa de Odiá (Ayuthaya) era a capital do Sião, “um dos milhores reinos que há em todo o mundo”. Por entre comércios e tratados, Fernão Mendes Pinto é testemunha do posicionamento português entre este reino e os de Pegu e Bramaa, hoje Myanmar (antiga Birmânia). As guerras eram contínuas e os pormenores violentos dos embates enchem páginas da Peregrinação, assim como as referências entusiasmadas e com vislumbres de cobiça a “ídolos mui grandes e mui cheos de ouro”. Felizmente que hoje só resta uma velha inimizade sem expressão bélica, com Myanmar a braços com uma ditadura militar que dura há dezenas de anos, e a Tailândia a desempenhar o papel de monarquia asiática de sucesso.

Festa religiosa em Pyi, Myanmar

A visão prática e economicista de Fernão não nos deixa esquecer que ele não era um viajante, mas um emigrante em busca de melhor vida. Onde vemos aldeias pitorescas e templos faustosos, os seus comentários ficam-se pela quantidade de ouro e pedras preciosas que foram utilizados na sua construção. Na Tailândia, chega mesmo a tecer considerações sobre a facilidade com que poderíamos conquistar mais este rico território, já que os tailandeses, além de “serem gente muito fraca, não costumam ter armas defensivas”.

Apesar da presença portuguesa na Ásia ter abrangido áreas vastíssimas, como é disso testemunho a Peregrinação, em certos pontos não durou mais que alguns meses ou anos, em outros deixou marcas perenes sob a forma de castelos, fortalezas ou igrejas; noutros ainda, as colonizações posteriores, sobretudo a holandesa e a britânica, foram especialmente destrutivas e remeteram a nossa passagem para os registos históricos da época. O futuro acabou por dar mais importância à nossa presença na Índia, nomeadamente em Diu e Goa: além de termos sido os primeiros europeus a chegar e os últimos a partir, por lá ficaram dezenas de igrejas, conventos e casas senhoriais, assim como influências linguísticas e gastronómicas. Mas a última cidade “portuguesa” foi mesmo Macau, já que as vizinhas de costa, Liampoo e Lanpancau, desapareceram nos rodopios da história.

As peripécias de Fernão Mendes Pinto são o espelho de uma época num continente que sempre nos fascinou. E embora o passar dos séculos e a consolidação progressiva da globalização nos torne cada vez mais iguais, distanciando a Ásia moderna daquela que podemos ler na Peregrinação, ainda é possível procurar – e encontrar – alguns dos lugares e culturas que rodearam as desventuras deste português no Extremo Oriente.

Fernão Mentes? Minto…

Nascido em Montemor-o-Velho entre 1509 e 1514, Fernão Mendes Pinto vive primeiro em Lisboa e depois em Setúbal. A sua “peregrinação” começa por volta de 1536, quando tem pouco mais de vinte anos, e move-o a ambição de enriquecer conhecendo o mundo.

A última parte da sua vida passou-a numa quinta no Pragal, arredores de Almada, onde esperou por uma tença pedida pelos serviços prestados no Oriente – que só foi autorizada seis meses antes da sua morte, em Julho de 1583.

A acreditarmos em tudo o que diz, durante os vinte e um anos que andou pela Ásia teria sido “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Félix, China, Tartária, Massacar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. Índia, Etiópia, Iémen, Abissínia, Malásia, Singapura, Indonésia, Tailândia, China, Japão, Vietname, Camboja, Mongólia, Irão e Myanmar são apenas os países hoje mais facilmente identificáveis. Sabe-se também que esteve ligado à Companhia de Jesus, conheceu Francisco Xavier, e tentou mesmo estabelecer uma missão jesuíta no Japão. Mas destes factos não reza a história que começou a escrever uma vez regressado a Portugal, em 1557, e que só seria publicada trinta e um anos após a sua morte. Igualmente estranha parece ser a demora de dez anos entre a autorização (obrigatória) do Santo Ofício, e a impressão do livro “Peregrinaçam de Fernam Mendes Pinto”, dedicado a Filipe III.

A obra é hoje conhecida como romanesca e autobiográfica, cujo rigor (ou falta dele) continua a ser debatido pelos críticos, mas no século em que foi publicada tratou-se de uma das primeiras referências ao Extremo Oriente, ainda desconhecido dos europeus. No entanto, as histórias mirabolantes e as situações extraordinárias que relata levaram a que alguns leitores mais incrédulos se lhe referissem como Fernão Mentes? Minto – enfim, como diz o autor, “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”.

Durante os séculos XVII e XVIII, a obra foi traduzida da versão castelhana e publicada nas principais línguas europeias, tornando-se num dos mais conhecidos livros portugueses no estrangeiro. Hoje não é tanto assim, mas pelo menos em Portugal são várias as editoras que publicaram a Peregrinação, em versão “escolar” ou “de biblioteca”, sendo por isso um livro fácil de encontrar.

 

Adaptado de texto publicado no magazine Fugas, do Público


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