Histórias de Alcova em Hotéis Baratos

Coisas do Mundo

Quando viajo, o quarto de hotel onde fico é a coisa que menos importância tem. Tamanho, televisão, minibar e telefone, são qualidades que ignoro completamente em proveito de uma outra: limpeza.

Talvez o melhor quarto da minha vida: uma tenda quirguiz.

Um quarto, dois quartos, três quartos…

Para mim, um quarto de hotel é um depósito de bagagem onde só vou para dormir; daí a minha recusa em pagar somas exorbitantes por quartos de luxo, e a minha quase exclusiva preocupação com lençóis e colchão.

Nos hotéis de 5 baratas que frequento, a experiência diz-me que convém poisar os haveres em lugares bem expostos e não dentro de armários – muito menos debaixo da cama, a menos que se tenha um particular gosto por grossas camadas de cotão ou antiguidades pouco higiénicas. Acrescente-se ainda que quem teve a ideia peregrina de que se deve mudar a roupa de cama de cada vez que muda o cliente, tem ódios profundos à espera dele em toda a Ásia – o que é que tem um cabelito preto na almofada? Ou as gelhas com a forma do corpo num lençol, se ele ainda está branco?

Na Índia devemos observar com cuidado as esquinas das paredes, onde geralmente os consumidores de pan, uma mistura de especiarias e tabaco que se mantém na boca como um rebuçado, esvaziam os excessos de saliva, e também ter cuidado com varandas sobre animadas ruas típicas, que geralmente se mantêm animadas – e típicas – entre as cinco da madrugada e as três da manhã. Na China, gosto particularmente das utilidades com que recheiam os quartos de hotel: chávenas, pacotinhos de chá e termos de água quente, claro. Mas também pequenas caixinhas com pentes, pasta e escova de dentes, toucas de banho, sabonetes e esponja para limpar os sapatos, assim como rolinhos de papel higiénico, tudo tão minúsculo que parece de brincar. E também há chinelinhos de papel e por vezes preservativos. Que práticos são os chineses.

Todos os que viajam sem marcações nem reservas, mais tarde ou mais cedo dão consigo num local onde as únicas três camas decentes foram ocupadas por um americano ou cinco israelitas – e aí estamos nós nas mãos da providência, o que pode significar “aterrar” no quarto de um hotel que funciona como bordel, onde as portas e os duches não param de funcionar. Mas no dia seguinte, com calma e tempo, encontra-se um lugar melhor. O pior de tudo é chegar aos sítios à noite e deambular de mochila; no Brasil, com medo dos assaltos; na Índia, perseguida por trinta riquexós a sugerirem hotéis; na China, por trinta e seis chineses com cartões e recomendações. E também há os países onde só somos assediados depois estarmos no hotel, como o Bangladesh, onde não se pode ficar num quarto no rés-do-chão sob pena de ter toda a população da cidade pendurada no parapeito da janela, com a mão em pala sobre os olhos para ver através do vidro – isto, se as janelas tiverem vidro.

 

Pensão familiar em Bikaner, Índia.

Há quem goste de ficar em antigas casas coloniais, e já tive ocasião de experimentar algumas em Nha Trang (Vietname) ou em Kandy (Sri Lanka). Mas para dizer a verdade acho tudo demasiado grande, e sinto-me sempre uma estranha em casa de uma velha tia, que tem medo que lhe suje as cortinas ou estrague a mobília. O único hotel “histórico” onde fiquei foi o Hotel de l’Air, em Agadez (Níger), provavelmente o primeiro hotel da cidade, já referido por Heinrich Bart, o primeiro explorador ocidental que ali chegou, em 1850. A julgar pela mobília e pelo pó, os quartos não tiveram muita manutenção depois disso – talvez para preservar a passagem do grande aventureiro – o que é uma pena, dada a sua potencialidade turística e localização fantástica no centro da cidade, em frente à Grande Mesquita.

A minha última experiência “radical” em termos hoteleiros seguiu-se, justamente, a uma aterragem nocturna em Niamey, a capital do Níger, da qual devo dizer que pus em dúvida a existência quando, no avião, vi (?) a iluminação da cidade. Depois de passar por três hotéis cheios, acabei depositada num quarto de bordel quase sem luz – como o resto da cidade – e de cor indecifrável, desde as paredes ao trapo de algodão que cobria a tarimba arqueada onde era suposto dormir. O barulho de portas, dos mosquitos e de uma ventoinha manca, juntamente com um calor peganhento e insuportável, transformaram a minha primeira noite na África Negra num negro pesadelo, que só acabou com uma sinfonia de galos pela alvorada.

Há quartos com pormenores arquitectónicos diferentes, que podem – ou não – deixar saudades. Já encontrei alguns que tinham janelas que davam directamente para a parede do quarto seguinte, a uma distância de dois palmos, outros com grades, por causa dos macacos agressivos que todas as manhãs desciam dos telhados para roubar qualquer coisa, de bananas a máquinas fotográficas (o japonês do quarto ao lado que o diga), provando que tinham os braços bem compridos. Também há quartos de banho para dois quartos, ou seja, com duas portas que dão uma para cada quarto; cada pessoa que entra sem intenção de tomar banho com o vizinho do lado tem de se lembrar de trancar as duas portas por dentro – e depois de se lembrar de as destrancar, para evitar cenas dos Flinstones a meio da noite. E se se ausentar, também tem de fechar muito bem a porta que dá para o seu quarto, já que os do outro lado podem lembrar-se de vir passar a tarde nos nossos aposentos e sair com alguma coisa que não lhes pertence.

Aliás, o problema da segurança é coisa em que se pensa sempre quando se escolhe um hotel. Para mim é já um bocado instintivo – e devo ter um bom instinto, porque até hoje ainda só fui roubada pela polícia líbia. Mas esses entraram sorrateiros quando eu não estava, abriram e fecharam a porta com a chave, mexeram em tudo e só me levaram dois CDs sem capas nem nada, que devem ter achado suspeitos. Uma mulher sozinha, com CDs sem capa, hmmm, devem ser os planos do oleoduto nacional. Mas não era; era música de um criativo que cantava com a família em casamentos, gravava os CDs em casa e vendia-os aos interessados.

Claro que às vezes há surpresas extremamente agradáveis. Nem tudo são desgraças, na procura de um local sóbrio e asseado. A verdade é que a memória é traiçoeira e quando contamos as histórias aos amigos, mesmo querendo ser isentos, visualizamos sempre primeiro os episódios mais picarescos, aqueles onde as baratas se esgueiram à pressa quando acendemos a luz do quarto, ou um outro onde um ratito passou a noite a saltar, tentando sair do balde do papel higiénico. Mas se fizermos um esforço também nos lembramos daqueles pequenos paraísos que se tornam verdadeiros lares, de cama fofa e limpa e funcionários discretos até à quase-inexistência – e até de quartos com uma boa luz de leitura na mesinha de cabeceira! Por isso não devemos desanimar, e embarcar em marcações de quartos em grandes hotéis, com muito tempo de antecedência; o melhor é escolher à chegada uma pequena pensão familiar, onde dois dias mais tarde toda a gente nos conhece e se prontifica a ficar à nossa cabeceira, no caso de um súbito ataque da malária. E não esquecer que nestes locais há sempre a possibilidade de conhecer pessoalmente o patrão e convencê-lo das vantagens indiscutíveis de nos ter como clientes, ainda que para isso tenha de nos subornar com descontos absolutamente irresponsáveis.

Estou a pensar na Horizon G. H., em Gilgit (Paquistão), nos seus quartos espaçosos e asseados e terraço com vistas dignas do nome. E nos bungalows à beira-mar da ilha de Koh Samui (Tailândia), onde sabe bem nadar à noite antes de comer aqueles frutos que parecem flores. Ou ficar a cicatrizar um mal de intestinos, entre os coqueiros e os vendedores de coco e papaia verde picante (a mesma que nos pôs doente). Idílico. A verdade é que às vezes os lugares são tão surpreendentemente agradáveis que apetece fazer um aluguer vitalício e escrever um livro. Uma certa pousada fora de mão, na ilha de Mýkonos, com uma piscininha morna e um bar-esplanada. Um certo resort na Praia do Forte, onde até podemos imaginar que estamos sozinhos no meio do palmeiral – nós, os macacos e dezenas de funcionários.

Um quarto bastante caro em Gwalior, Índia.

E finalmente acho que devo revelar um dos meus lugares favoritos: o Annapurna Lodge, situado numa ruela com montes de lixo com alguns palmos de altura, o eventual cadáver de rato atropelado por um riquexó fumarento, velhos freaks alucinados e lojas de muitas coisas, de queijo de nak a colares do Caxemira, pão alemão e roupa tibetana. Fica em Katmandu, e a única explicação para esta sensação de relaxamento deve ser o estado aproximadamente miserável em que aí chego depois de mais um trekking nas montanhas. Sei que há muito melhor na cidade, mas é inexplicável o conforto de ver o mesmo lugar ano após ano, cada vez mais decrépito, é certo, mas quase um lar. Acho que já fiquei nos quartos todos e conheço a vida dos funcionários. A casa-de-banho é limpa, há bons restaurantes vegetarianos nas proximidades, a bela Praça Durbar fica ali ao lado. Que mais posso desejar?


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Quando viajo faço sempre um seguro de viagem pela Nomads


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