A Lua de Pushkar

Destinos

Apesar dos milhares de turistas que a visitam anualmente, a cidade de Pushkar continua a ser um dos lugares mais sagrados e emblemáticos da Índia. Sobretudo durante a Feira de Camelos, que tem início pouco antes de cada Lua Cheia de novembro.

Pushkar, cidade sagrada do Rajastão

Pushkar é uma pequena cidade indiana situada no estado do Rajastão, que seria apenas importante para as tribos nómadas e seminómadas que vivem nas regiões desérticas em redor, não fosse o caso do deus Brahma ter atirado uma flor de lótus que caiu no lugar onde hoje fica o lago que lhe dá o nome. Não é conhecida a data do evento, mas no século V o viajante chinês Fa Sien já registava uma grande presença de peregrinos hindus de visita ao Pushkar Sarovar, o lago que é um dos mais sagrados de toda a Índia.

Hoje, a grande Kartik Purnima, festival que tem lugar durante a Lua Cheia de novembro, atrai para cima de trezentos mil visitantes, entre peregrinos e turistas, indianos e estrangeiros. Dito assim, o número pode parecer assustador, mas o evento começa antes da Lua Cheia e estende-se durante quinze dias. Além do mais falamos da Índia, país onde “tudo é possível e nada é impossível”, como os indianos gostam de dizer. Afinal, o que são duas centenas de milhares de visitantes quando as Khumb Melas, festivais religiosos hindus, arrastam milhões de visitantes – em 2013 ultrapassaram os cem milhões! – que tentam banhar-se na água do Ganges todos ao mesmo tempo, em cidades como Hardwar ou Allahabad?

O Pushkar Sarovar está cercado por casas e só é visível espreitando por algumas ruas estreitas. Acede-se à água por cinquenta e duas escadarias, ou ghats, distribuídas pelas margens, algumas escondidas por pequenos arcos. É comum os estrangeiros serem recebidos por “sacerdotes” que se apressam a amarrar-lhe um fio no pulso ou a oferecer uma simples flor, pedindo em seguida um “donativo” pelo “Pushkar passport” que acabaram de oferecer… O número crescente de turistas estrangeiros dá azo ao aparecimento de esquemas mais ou menos inocentes como este, mas na Índia o sagrado sempre conviveu com o profano, e o negócio não é, de modo algum, rejeitado pela religião. E apesar do intenso movimento do bazar, a cidade permanece essencialmente sagrada, com os seus restaurantes vegetarianos e as rigorosas proibições de carne e álcool.

Em redor do lago, dúzias de templos e santuários recebem os peregrinos e abrigam sadhus, homens santos que vivem uma vida de pobreza e nomadismo dedicada à religião, mendigando e vendendo mezinhas benzidas. Os peregrinos banham-se no lago, enquanto vacas e macacos – representações do deus Hanuman – se aproximam sem medo para receber dádivas de bananas, amendoins, e mesmo pacotes de bolachas. Um guarda de apito em punho faz recuar quem chega calçado demasiado próximo da água, e cartazes pedem para não se fotografar os banhos dos peregrinos – pedido que nem os próprios indianos acatam.

O templo mais importante, como não podia deixar de ser, é o de Brahma, o deus da Criação que atirou a flor de lótus e causou tudo isto. Este é mesmo o seu principal templo na Índia, mas não o único, como alguns locais gostam de dizer. A ghat de Brahma, mas também a Varah e a Gan são as mais sagradas e pretendidas pelos que procuram a purificação pela água. Mergulham a cabeça, deixam cair umas gotas de água na boca, fazem as suas orações e saem para o conforto da roupa seca que os espera na margem.

À noite é a vez dos festivais religiosos, com cânticos e oferendas ao lago, que fica salpicado de lamparinas floridas a vogar sobre a água. Com o cair da luz do dia, sobretudo com a Lua cada vez maior, as pujas (rituais sagrados) redobram de intensidade, com cânticos e sinos que criam uma atmosfera envolvente e contemplativa. A noite de Lua Cheia é o ponto alto das celebrações, e a cerimónia da Maha Aarti dura até de madrugada, começando com uma procissão que percorre parte da cidade e termina no lago. Nessa noite os templos não descansam, o som de sinos e tambores parece interminável. O lago é cercado por uma grinalda de lamparinas trazidas pelos peregrinos, os cânticos e as ofertas sucedem-se com a participação de sacerdotes brâmanes.

Se as noites acabam tarde durante a Feira de Camelos, os dias também não começam cedo. As manhãs são tão frescas como a noite, o nevoeiro tarda a levantar, e para tomar o pequeno-almoço recomenda-se recorrer ao próprio hotel onde se fica, já que os pequenos restaurantes da cidade, apesar de muitos, parecem ter todos o mesmo horário de abertura: bem depois das 10h da manhã. A meio do dia os restaurantes começam a libertar perfumes irresistíveis que ultrapassam os tradicionais pratos com molhos bem temperados. Os cardápios abrangem torradinhas com manteiga para o pequeno-almoço, a par com as parathas recheadas de legumes picantes e rolinhos de canela; as lentilhas de caril com arroz aparecem ao almoço, a par com falafel à moda do Médio Oriente ou pizza. Todas as latitudes estão aqui representadas, já que o turismo estrangeiro é abundante e estimado. Há mesmo quem fique por ali a viver uns meses, acompanhando o lado espiritual (cursos de ioga ou de meditação, estudos religiosos) com negócios, com destaque para a exportação de roupa, encomendada à medida nos alfaiates locais.

No acampamento da Feira, os vultos enrolados em cobertores, aconchegados junto aos camelos, começam a mover-se. Das tendas de pano e das camas de madeira e corda levantam-se as primeiras figuras, enrolando os turbantes com destreza. Os nómadas são os que chegam primeiro à Feira de Camelos com as suas cáfilas, mas também manadas de vacas e de cavalos. Acampam com os seus animais nos arredores da cidade, e muitos deles trazem parte da família. De manhã e ao fim da tarde, os mais novos andam com cestos a recolher patelas de bosta e alguns raminhos secos para acender o lume e fazer o chai, o chá com leite que sustenta a nação indiana. E aqui, geralmente, o leite é de camela; os donos aproximam-se das fêmeas e ordenham-nas para recipientes de metal, enquanto alguém amassa a farinha com água e vai estendendo chapatis sobre uma placa de madeira ou de chapa.

De roupa branca e turbante garrido, bigodes imponentes e brincos de ouro, os rajastanis são o exemplo da adaptação ao deserto e da frugalidade. São também uma das imagens mais vendidas pela Índia, pela fotogenia destes homens esguios e bronzeados, antepassados dos ciganos, pelas cores e bordados das saias e mantos das suas parceiras. Para aos visitantes estrangeiros esta é a parte do festival que se sobrepôs – e acabou por dar o nome – à grande reunião anual em redor do lago: a Feira de Camelos chama cada vez mais visitantes, ainda que muitos apenas passem aqui o dia e se mudem depois para cidades com infra-estruturas mais luxuosas do que as numerosas, mas modestas, guest houses de Pushkar; durante a feira os preços das dormidas chegam a ser multiplicados por dez, e mesmo assim poucos quartos ficam vazios.

Alheios a tudo isto, no acampamento os camelos mastigam os molhos de erva ou palha trazidos pelos seus donos, que por ali ficam agachados em grupos, enrolados em cobertores, partilhando chás e cigarros. A conversa alonga-se pela manhã, em volta de pequenos fogos ou fogões onde o chá ferve. Alguns fumam shillom, cachimbo artesanal de haxixe, que vão passando em redor. O ambiente é lento e colorido, embrulhado em fumo e no nevoeiro matinal.

A cidade fica no fundo de um vale entalado entre pequenas montanhas, e no cimo de uma delas – cerca de três quilómetros íngremes por um caminho bem tratado – fica o templo de Savitri, a primeira mulher de Brahma. A panorâmica abrange todo o vale e a Montanha da Cobra que separa Pushkar de Ajmer, a cidade vizinha, que por sinal é muçulmana. O templo em si não vale o esforço, mas a vista é purificadora para os olhos e os ouvidos: um vale extenso e plano entre os montes, um mais verde e o outro a anunciar o deserto; o casario baixo, azul e branco, da cidade, com o olho azulado do lago no centro; o formigueiro pardo dos camelos que se estende entre a povoação e a linha de comboio. Cá em cima não se ouve o rugido contínuo dos veículos, as buzinadelas, o ruído das multidões em movimento. Corre uma brisa limpa, sem o pó alaranjado que cobre tudo lá em baixo, e as sinetas do templo vão marcando a entrada dos crentes.

O extremo oposto encontra-se no Sadar Bazar, onde apesar da proibição de veículos motorizados, o frenesi de milhares de visitantes é quase palpável. Os visitantes ocupam os pequenos restaurantes, passeiam pelas ruas, entram nos templos e nas lojas e compram as coisas mais extraordinárias, de roupa que imita a marca Desigual, a colares de missanga com as cores de cada um dos deuses. Roupa, bijutaria e incenso parecem ser os mais procurados, mas também há cerâmicas, máquinas fotográficas, molhos de erva para oferecer às vacas que por ali deambulam, doces feitos na hora (e na rua), calendários em papel artesanal ou garrafinhas de plástico para levar água do lago para casa. E imagens dos deuses, claro.

Já há algum tempo que a Feira de Camelos de Pushkar é um dos cartazes turísticos do Rajastão, provavelmente o estado indiano mais visitado por turistas estrangeiros. Ninguém resiste à beleza e ao colorido dos trajes típicos das mulheres, com as suas saias compridas, corpetes e mantos, aos homens garbosos vestidos de branco, com turbantes de cores incandescentes, cavalgando camelos pelas dunas do deserto do Thar. Eles em poses de pastor, conversando sobre os animais encostados ao cajado, enrolando cigarros; elas saindo pela manhã com as típicas vasilhas de metal empilhadas na cabeça, em busca da água para as abluções e para a cozinha. Para além disso, o Rajastão tem centenas de fortalezas e palácios de marajás a coroar os montes, como o majestoso forte de Jodhpur, que se levanta de um mar de casas azuis, ou o de Jaisalmer, que parece sair das areias do deserto. Há palácios convertidos em hotéis de charme de uma pompa arcaica e exemplos de arquitetura únicos, como o templo Jain de Ranakpur, ou o palácio de Udaipur. A cultura popular transparece na rua: a música de flauta dos pastores, os grupos de mulheres nómadas com pulseiras até aos ombros, as carroças puxadas por camelos e as aldeias de casinhas baixas, algumas com telhado de colmo. O Rajastão guarda ainda tesouros naturais que vão para lá do deserto: algumas das suas montanhas são das mais antigas do mundo e terminam em colinas verdes e florestas densas onde, como em Ranthambhor, vivem tigres, leopardos, hienas, macacos e veados.

Pushkar é o lado sagrado deste cenário digno de filmes, teatral e virado para o turismo, mas ao mesmo tempo genuíno. E durante a Lua Cheia de novembro a Feira de Camelos atrai todo este mundo para a cidade, transformando Pushkar num catálogo de maravilhas vistosas. Muito para lá de um ajuntamento por razões religiosas e trocas comerciais, como era antigamente, o evento é também aproveitado pela Turismo do Rajastão para mostrar um pouco mais da cultura local. Num folheto distribuído aos turistas ficamos a conhecer os espetáculos diários, que vão de competições de decoração de camelos, danças tradicionais protagonizadas pelas meninas das escolas, a corridas de camelos, cavalos dançarinos, uma feira de artesanato e até um concurso de bigodes! Todas as manhãs acontece qualquer coisa de extraordinário no pequeno estádio local, e o bater dos tambores, juntamente com os guizos das patas dos camelos e dos cavalos, anunciam-no sonoramente quando passamos nas proximidades.

Mas na verdade, o público acaba por ser o mais interessante de tudo. Enquanto esperam para fazer umas danças esparsas, rápidas, e que levantam uma nuvem de poeira sobre as máquinas fotográficas dos turistas, os grupos de meninas alinhadas por cores assistem ao espetáculo prévio com um ar sério, formando um quadro irresistível; enquanto os cavalos dançam, sacudindo as campainhas dos pés ao som de tambores de lata, os aldeãos chegam do acampamento e admiram a arte com grande interesse, figuras soberbas de turbante, bigodes e brincos de ouro, comentando com ar conhecedor, com os amigos, o valor do animal. E o melhor “espetáculo” é mesmo passear de manhã cedo ou ao fim da tarde, quando a Lua ainda não decidiu esconder-se, por entre as fogueiras, tendas e vultos do acampamento. É um privilégio assistir à vida real, nos seus pequenos gestos de comer, conviver e dormir, ou partilhar uns minutos de conversa gestual com um destes homens tisnados ou com as crianças que os acompanham, que pedem fotos em poses “de filme” com os amigos. No final, dos mais jovens aos mais velhos, raros são os que sabem escrever a morada para receber as fotos, insistindo em ditá-la. Sabem tudo sobre o seu universo, um universo arcaico consolidado por séculos de existência, mas muito pouco sobre o resto. E muitas Luas vão passar antes de alguma mudança acontecer.

 


Pub


Quando viajo faço sempre um seguro de viagem pela Nomads


Sofia Ribeiro Outubro 29, 2014 às 12:22

Descobri há pouco este blog e tem sido um prazer viajar contigo através das palavras para sítios onde sonho um dia ir. As fotografias que ilustram os artigos também são muito boas. Parabéns e continua, porque deste lado há pessoas que gostam muito do que fazes.

Responder

Comedores de Paisagem Novembro 17, 2014 às 9:57

Obrigada, Sofia! Fico sempre contente quando gostam do que faço! Espero que um dia tenhas oportunidade de viajar por estes sítios – e não só! 🙂

Responder

José Carvalho Novembro 20, 2014 às 2:28

Subscrevo….

Responder

Comedores de Paisagem Novembro 20, 2014 às 9:17

🙂 Só posso responder com um grande sorriso!…

Responder

Deuzinha Rego Novembro 27, 2014 às 11:25

Delicioso!
Obrigada Ana! Já tenho viagem marcada para a Índia! Será em março.
Beijo

Responder

Comedores de Paisagem Dezembro 2, 2014 às 11:35

Que bom! Vais adorar! Depois quero saber tudo… 🙂

Responder

Deixe o seu comentário!