As Mil e Uma Noites de Samarcanda

Viagens com Livros

Não é uma visita guiada pela cidade, rua a rua, mesquita a mesquita. Não é, tão pouco, o retratar fiel de uma época antiga ou moderna, dos costumes e religiões dos seus habitantes. Pela abordagem histórica que faz a um Oriente que julgamos já não existir, a obra Samarcanda, de Amin Maaluf, faz renascer no leitor todo o romantismo associado ao nome mágico desta cidade: as Mil e Uma Noites e as caravanas de camelos de passagem pela Rota da Seda, os bairros poeirentos onde se acotovelavam multidões de turbante, os palácios faustosos de emires cruéis e os seus haréns proibidos, os jardins paradisíacos, palcos de noitadas de vinho e poesia.

Samarcanda

O fio da meada é a história do Manuscrito de Samarcanda, livro de poemas de um poeta persa do século XI que desaparece no naufrágio do Titanic. Benjamin Omar Lesage trazia-o do Irão para os Estados Unidos, e é a vida do poeta Omar Khayyam e as viagens de Lesage em busca da sua obra perdida que nos guiam pela antiga Pérsia e Ásia Central.

Benjamim chega a Samarcanda no início do século XX, com “curiosidade de ver o que subsistia da cidade onde desabrochara a juventude de Khayyam”. Mas já não há nem memória dos velhos bairros de Maturid ou Asfizar, ou dos jardins e palácios de outrora. A praça principal, a de Registan, está em ruínas: (…) “três gigantescos conjuntos, torres, cúpulas, pórticos, altos muros todos ornados de mosaicos minuciosos, de arabescos com reflexos de ouro, de ametista, de turquesa. E de laboriosas escritas. Tudo ainda é majestoso, mas as torres estão inclinadas, as torres estão esventradas, as fachadas escalavradas, corroídas pelo tempo, pelo vento, por séculos de indiferença; nenhum olhar se leva para estes monumentos, colossos altaneiros, soberbos, ignorados, teatro grandioso para uma peça irrisória.” Um século depois, os visitantes têm mais sorte.

A permanência russa, iniciada no século XIX e terminada com o fim da URSS e a independência do Uzebequistão, trouxe o estudo arqueológico e a recuperação dos monumentos da época de Tamerlão e gerações seguintes: as mesquitas e madrassas da Praça de Registan, mas também a mesquita de Bibi-Khanim, os túmulos de Shahi-Zinda, o observatório astrológico de Ulughbek e o seu mausoléu, onde repousa com o avô, Tamerlão. Os azuis e os verdes das cúpulas gigantescas remetem-nos para o ambiente das Mil e Uma Noites. Os arabescos requintados em majólica, o ouro sobre azul das mesquitas e madrassas, as ramagens floridas de azulejo que trepam por estes muros antigos, tudo tem um requinte que já não existe. Como se a lenda fosse verdadeira, e uma Samarcanda subterrânea tivesse sido construída por um rei antigo, na esperança vã de escapar ao olhar do deus da morte, para emergir agora das areias, intacta e incólume ao tempo.

Mas da época de Khayyam, é verdade que nada resta. Do oásis rico e hospitaleiro, onde “jamais algum viajante teve de pagar para se alojar ou para se alimentar”, e onde a maior dádiva do deserto, a água, jorrava de mais de duas mil fontes “todas oferecidas pela gente de Samarcanda”, nada sobrou após a passagem de Gengiscão, no século XIII. Foi preciso esperar um século para que Tamerlão decidisse fazer aqui a sua capital e se iniciasse um período em que floresceram a construção e as artes decorativas; durante trinta e cinco anos, artífices árabes, persas, da Índia e do Cáucaso, produziram obras sem rival em nenhuma parte do mundo. E são essas que podemos ver hoje, tal como NÃO são descritas por Maaluf. E, no entanto, o ambiente arcaico, as personagens de outros tempos estão lá. Há velhos de barbicha pontiaguda, casacão comprido e faca na faixa enrolada da cinta, bamboleando-se nas botas negras de cano alto dos cavaleiros. As mulheres, muçulmanas de lenços coloridos, usam vestidos de um estampado ziguezagueante sobre as calças tufadas e vendem legumes e fruta nos mercados, algumas ainda com as sobrancelhas unidas por um traço negro. Pêssegos, melões e uvas, desde há séculos que o deserto produz de tudo, com a ajuda da irrigação por ariks, os canais que aproveitam a escassa água da zona. Produz-se também algodão, fabricam-se pães achatados, doces de açúcar, pistácios e passas, como as que o cádi Abu-Taher, o mesmo que ofereceu a Khayyam o caderno que seria o seu manuscrito, tinha o hábito de comer e distribuir pelos visitantes. Interrogamo-nos, como Benjamim: “Havia algum pormenor da cena que não pudesse ter existido tal qual no tempo de Khayyam?”.

“- Os astrólogos proclamaram-no desde os alvores dos tempos e não mentiram: quatro cidades nasceram sob o signo da revolta, Samarcanda, Meca, Damasco e Palermo! Jamais elas foram submetidas aos seus governantes, a não ser pela força, jamais seguem o recto caminho, se ele não é traçado pelo gládio. Pelo gládio é que o profeta domou a arrogância dos mequenses, pelo gládio é que eu domarei a arrogância da gente de Samarcanda!”. Assim ameaçava Nasr Khan – senhor da Transoxiânia, cujo centro era Samarcanda – e, provavelmente, todos os que da cidade tentaram tomar posse. Venciam os exércitos, mas não o povo. Só assim se explica que após guerras e massacres, dominada por turcos, mongóis e russos, a cidade mantenha o seu caráter. Os habitantes são, na maioria, tajiques de língua de origem persa, hábeis no comércio, pastores semi-nómadas reciclados pela força das circunstâncias políticas. Terminaram as guerras de clãs e os raids sobre o gado dos vizinhos, mas a audácia e o sentido de independência estão lá. Abunda o pequeno negócio familiar, como os almoços no pátio da casa, que os restaurantes são escassos. Discute-se o preço, as mulheres servem a costumeira sopa de grão-de-bico, carneiro e batatas. Os donos da casa juntam-se a nós, sem salamaleques nem distâncias, só uma simpatia sábia e alguma curiosidade. À sombra das grandes cúpulas das mesquitas de Tamerlão continuam a crescer a tolerância e o individualismo, regras básicas seculares da Ásia Central.

As avenidas construídas pelos soviéticos são retas e largas, os prédios de cimento cinzentos e feios. Mas nas zonas antigas, nas mesquitas seculares, no mercado de Siab ou no observatório de Ulughbek revivem-se as épocas passadas num piscar de olhos. “Uma brisa leve, a areia põe-se a voltejar, as roupas entufam-se, toda a praça se cobre de um véu irreal.” – é Samarcanda que renasce do deserto mais uma vez, mil e uma noites após cada conquista.

Amin Maaluf

Nascido no Líbano em 1949, Amin Maaluf preferiu uma carreira de jornalista à aplicação dos seus estudos em economia e sociologia. Fez grande reportagem durante anos, foi director do jornal An-Nahar International e redactor no Jeune Afrique. A maior parte do seu tempo é consagrada à preparação dos seus livros, que quase sempre requerem uma profunda investigação histórica. Uma boa parte da sua vida foi dedicada a produzir obras sobre o que tão bem conhece: o Médio Oriente e o Norte de África, seja em ensaios que se debruçam sobre a sua atualidade social, como As Identidades Assassinas, ou em romances que contam a vida de personagens históricas, como Mani, o fundador do maniqueísmo, em Jardins de Luz, ou o poeta persa Omar Khayyam, em Samarcand”. Mais do que a verdade histórica, as suas obras recriam-nos ambientes e épocas com uma verosimilhança que parece inquestionável.

Maaluf vive em Paris desde 1976 e já recebeu vários prémios, nomeadamente o Prix Maison de la Presse, com a obra As Cruzadas Vistas pelos Árabes e o Prémio Goncourt de 93, com O Rochedo de Tanios.

Adaptado de texto publicado no magazine Fugas, do jornal Público


Pub


Quando viajo faço sempre um seguro de viagem pela Nomads


Deixe o seu comentário!