Mrauk U – Memórias de Outros Templos

Destinos

Em Myanmar há uma povoação remota e fora do circuito turístico, onde os templos espalhados por colinas baixas que se erguem da floresta tropical datam da época em que os portugueses navegavam por aqui. Todo o caminho até Mrauk U é uma descoberta da antiga Birmânia, numa viagem pura e dura de cinco dias, sobre a terra e sobre o mar.

Fim do dia em Mrauk U

Mrauk U: de cidade rica a aldeia remota

Mrauk U era uma cidade rica, na época em que os portugueses estabeleciam as suas rotas comerciais na Ásia. Dos seus magníficos templos budistas, há mesmo um que dizem ter sido construído para celebrar a vitória frente às tropas lusas. A combinação de história, localização remota e nome exótico tornaram-se um íman irresistível durante uma das minhas viagens em Myanmar.

Na verdade até fiquei desiludida quando ouvi o nome de Mrauk U pronunciado pela primeira vez, no Turismo de Yangoon. Parecia um miado de gato com cio, sem aquele erre a dar-lhe o exotismo e o carácter que o lugar por força devia ter.

– Querem ir a Mia-ú ? Só de avião. Por terra é impossível, e os barcos só levam carga.

É sempre assim na ex-Birmânia, nomeada União de Myanmar pelos Pinochets asiáticos que desde os anos 50 (des)governam o país com mão de ferro. Graças a estes militares iluminados, Myanmar está sempre no Top 10 dos atentados aos Direitos Humanos, e a produção nacional mais rentável continua a ser o ópio. Os estrangeiros que não chegam em viagem organizada são vistos com desconfiança, e todas as informações vindas de organizações ligadas ao governo são, no mínimo, pouco fiáveis. A situação tem vindo a melhorar, com mais áreas abertas ao turismo e mais tempo de permanência concedido, mas o governo esforça-se por manter toda a gente nos mesmos circuitos, a pagar preços multiplicados por dez – e de preferência em dólares. Nestes casos, a tática a usar é sempre a mesma: aproximarmo-nos o mais possível do sítio onde queremos ir. As pessoas tendem a deslocar-se com mais frequência na zona onde vivem; logo, quando mais perto estivermos, mais probabilidades existem de encontrar algum tipo de transporte até aos históricos templos de Mrauk U, abertos aos viajantes independentes desde os anos 90. Situam-se na costa ocidental, na província de Rakhine – Arracão, para os portugueses -, onde a fusão das tribos locais Bilu, Bengalas e Birmaneses resultou numa nuance racial e cultural que, como todas as diferenças, desagrada ao governo militar.

De Yangoon a Pyay

A primeira etapa levou-nos de Yangoon a Pyay, com uma paragem em Pathein. A partir daqui, o “autocarro” era um camião carregado de sacos. Os “lugares bons”, junto ao condutor, só se conseguem comprando de véspera, mais caros; ficámos então com os “lugares maus”, empoleirados em sacos de arroz com o resto do povo, à mistura com galinhas e fardos variados. Ocasionalmente mudávamos de companheiros: mulheres com filhos ao peito, monges e monjas, velhos e miúdos com as respectivas cargas iam entrando e saindo da caixa do camião. Pareciam todos feitos de borracha, dobrados em três, agachados, deitados, fumando cigarros que ofereciam com sorrisos; alguns chegavam mesmo a adormecer profundamente sobre aqueles sacos que, para os nossos traseiros ocidentais, pareciam cheios de pedras. Contando as paragens para comer e para mostrar os passaportes a militares de óculos escuros e metralhadora ao ombro, foram onze longas horas de viagem até Pyay.

Vendedoras no mercado de Taungup

De barco até Sittwe

Na pequena pensão onde ficámos, soubemos que havia barcos ocasionais para Sittwe, a cidade mais próxima de Mrauk U, a partir do porto de Taungup, a cerca de cem quilómetros dali. Desta vez o transporte era mesmo um autocarro, apesar do prazo de validade já ter terminado há muito. Com a lotação esgotada e o corredor repleto de fardos volumosos, não demorou dez minutos e já estávamos parados a ouvir as marteladas que o condutor dava por baixo do motor, por entre pingos de óleo e esguichos de água a ferver. Dois postos de controlo militar mais adiante, que obrigaram toda a gente a exibir documentos de identificação, e seguiu-se uma nova e mais longa sessão de marteladas no motor. Horas mais tarde, um pneu estoirou com grande estrondo. Antes de chegar, já iluminados por uma meia-lua muito brilhante, um pfffff inconfundível anunciou o fim de outro pneu, que teve de rodar mais uns quilómetros até uma cabana, onde o repararam à luz de lanternas…

É verdade que a estrada não era fácil, rodopiava em curvas estreitas pela montanha coberta de selva, com subidas e descidas severas e, às vezes, sem asfalto. De vez em quando surgia um aglomerado de cabanas de bambu, paredes e teto de folha entrançada, onde moravam famílias e deambulavam cães, gatos, galinhas, patos, porcos, cabras e vacas. Quando nos viam, juntavam-se em grupos curiosos de adultos sorridentes e crianças agitadas, lançando uns hello e hey you envergonhados. Os percalços mecânicos deram-nos tempo para confraternizar e aprender uma liçãozinha de vida. Em vez de se impacientarem, os birmaneses agacham-se a fumar um cigarro, vão discretamente até à mata de bambus que envolve a estrada, conversam, comem qualquer coisa. Das casas próximas costuma aparecer alguém para oferecer uma sopinha de massas ou bebidas, aproveitando para fazer algum negócio. Pressas para quê? Ninguém protesta nem apressa o motorista, que também fuma o seu charuto, sorrindo placidamente. Sem dúvida que Buda passou por aqui.

Quem conhece algumas palavras de inglês aproveita para meter conversa, sempre com extrema delicadeza, perguntando aquilo que todos querem saber: de onde somos. A maior parte não parece entender a resposta, dizem “muito longe”, mas por várias vezes alguém arriscou um “estiveram aqui, há muito tempo”. A simpatia é generalizada. Todos nos acolhem com sorrisos e basta mostrar curiosidade por alguma coisa para sermos logo presenteados com amostras. Oferecerem-nos cheroots, os pequenos charutos que todos fumam, lascas de carne de búfalo seca, rebuçados e bagas vermelhas. Em troca, multiplicam-se as sessões de fotografia, sobretudo de crianças, o orgulho de todos. E compreende-se bem porquê; as crianças birmanesas devem ser as mais bem-educadas do mundo. São sossegadas, pacientes, respeitadoras – e lindas, mesmo com as carinhas besuntadas com a pasta amarela do tanaka, uma mistura feita com casca de algumas árvores e água, que amacia a pele e protege do sol.

A viagem durou nove horas, mas só no fim sentimos o cansaço. Chegámos já noite cerrada, cobertos de uma poeira fina e amarela, que o calor não deixou fechar as janelas do autocarro. Na pensão todos falavam inglês e informaram-nos de que o barco para Sittwe largava “quase diariamente”, às nove da noite. Uma sopa de massas mais tarde e caímos de sono, nas camas duras do forno que nos servia de quarto.

Paragem em Taungup

Tropicalíssima, Taungup é um emaranhado de palmeiras por onde se distribuem uns casebres pernaltas de madeira e folhas, alguns com barcos estacionados por baixo, encalhados na lama, à espera da próxima monção. As únicas construções que se destacam no mar verde escuro da vegetação são as payas (pagodes), geralmente brancas e douradas, pontiagudas e ofuscantes. O porto fica a três quilómetros, mas os estrangeiros compram o bilhete na Inland Water Company, onde um funcionário nervoso insiste que quer os dezoito dólares certos, em trocados, pelas duas passagens. Com o calor que já está às nove da manhã, cansa muito discutir. E até para chegar ao porto decidimos apanhar um trixó, o riquexó com sidecar típico de Myanmar. Pelo menos, junto à água corre uma brisa. Ficámos por ali a apreciar o vaivém de barcos e o esforço dos trixós, que chegam carregados de mercadoria, transportada depois para os barcos por militares. Um deles aproximou-se de nós com uma mão a vasculhar o bolso, de onde sacou um calendário para nos oferecer. Sem palavras, e com um enorme sorriso.

Por conselho insistente do dono da pensão, dirigimo-nos ao barco às cinco da tarde – e já quase não tínhamos lugar para pôr os pés. O convés estava cheio de gente, sentada sobre pequenos plásticos e esteiras, que estendiam para demarcar o seu território. Famílias inteiras, fardos imensos. Enquanto procurávamos uma esquina sem cestas nem panos estendidos, descobrimos um magnífico estrado quadrangular, encostado à cabina da tripulação, que ainda ninguém tinha ocupado. Instalámos as mochilas, satisfeitíssimos, e partimos à descoberta do barco. Em cima ficavam as cabinas individuais, todas ocupadas por militares, e duas portas que diziam WC, mas que se encontravam trancadas. Na popa anunciava-se a instalação de uma cozinha, com sacos de arroz, alguns peixes espetados em paus, uns cadáveres de galinha empilhados junto a um par de panelões e woks, e um pequeno fogão a gás.

Vistas do barco: pagodes assinalam a costa

Quando regressámos ao nosso lugar descobrimos que tínhamos companhia. Aparentemente, o estrado era o lugar reservado às ordens eclesiásticas, cujos digníssimos representantes já se tinham encarregado de empurrar as nossas mochilas para um lado. Eram quatro monges, mas só um deles se mostrava ofendido, indicando por gestos que devíamos descer o degrau e misturar-nos com os terráqueos, lá em baixo. Os vizinhos apressaram-se todos a tentar arranjar espaço extra, mas era mesmo impossível. A solução foi deslizarmos para umas cadeiras rotas e desengonçadas que datavam do Raj britânico, e que eram os únicos lugares sem gente. Claro que era preciso pagar mais uns extras, para ir ali com as costas arqueadas e com umas barras de madeira espetadas por trás dos joelhos; por isso é que ninguém as queria. Preferiam todos pagar menos e conseguir algum sono esticados no chão, em vez de ir sentados naquelas antiguidades…

A viagem só começou quando o último militar rodeado de soldadesca se esgueirou para a sua cabina. O capitão tentou animar as massas, pondo música tradicional aos berros nos altifalantes. Mas para os nossos limitados ouvidos ocidentais, a música birmanesa não passa de uma grande bulha de gatos vadios, sobrepondo-se a instrumentos de corda e pratos de metal. Ainda antes de partirmos, servimos de ponte a um barco que acostou ao nosso, e cujos ocupantes invadiram o convés com a respectiva carga – que incluía galinheiros de bambu e bicicletas – para chegarem a terra. Finalmente arrancámos, já a lua brilhava. E finalmente parámos, uma hora mais tarde. “Porquê?”, perguntava eu para os lados, a sufocar de calor, sem a brisa do movimento. Sleep (dormir), foi a resposta que alguém me deu. Iam todos dormir, a dois passos de terra, flutuando na ria entre canais de coqueiros e palmeiras. Sem posição na cadeira, a suar e perseguida por mosquitos sanguinários, cujo zumbido enervava tanto como os guinchos desconexos da música, preparei-me para uma noite de horror. O cenário parecia o de um massacre num campo de refugiados, com a amálgama de corpos abandonados à mistura com trapos e caixas; pernas e braços ao acaso e maxilares descaídos davam à cena o toque mortífero, fazendo-me sentir sozinha num barco fantasma, à deriva, carregado de mortos. Até que uma série de roncos ritmados veio juntar-se ao zunir dos mosquitos, obrigando-me a reconhecer que a música birmanesa não era assim tão má.

A felicidade só regressou quando o sol nasceu, e os cozinheiros abriram o seu negócio com mohinga (sopa de peixe), café e pãezinhos recheados de pasta de feijão. Os “mortos” ressuscitaram e o barco encheu-se de movimento.

Criancinhas mamam no colo das mães, homens barbeiam os três pêlos do bigode com uma pinça, lava-se os dentes e aplica-se tanaka na cara, antes que venha o sol. Como ninguém fala uma língua comum, não sabemos quanto tempo vai durar a viagem e vamos apreciando as vistas da amurada. O barco avança por entre mangais e palmeiras, onde as aldeias só são denunciadas pelas pontas aguçadas dos pagodes. Percorremos canais e passamos por ilhas, sem nunca perdermos de vista a costa.

A comunicação com os companheiros de bordo também foi de vento em popa. Ofereceram-nos arroz – e uma colher para o comer, ao verem a nossa triste figura a tentar acertar com os grãos na boca. Os birmaneses é que não se atrapalham com esses detalhes; comem habilmente com as mãos, com pauzinhos, ou apenas com uma colher. O nosso guia de viagem fez grande sucesso, desaparecendo de mão em mão, para nos ser entregue por um desconhecido, horas mais tarde. As fotos de Aung San Suu Kyi e do seu pai eram as mais admiradas, e o facto de o andar de cima estar ocupado por militares não parecia assustar ninguém. E era da amurada superior que melhor se via deslizar a paisagem, composta por muita vegetação cerrada e verde, levantando-se das águas escuras da baía de Bengala. Em baixo, na “cozinha”, o caril de legumes levava alho, cebola, curcuma, (açafrão das Índias), canela, pasta de piripiri, cominhos, loureiro e água de demolhar tamarindos – muitos dos temperos que fizeram os portugueses rondar pela Ásia. Também havia arroz, frango estufado, e peixes empalados e fritos. O panelão era mexido com um velho remo e, no fim do almoço, um miúdo içou um balde de água do mar para lavar toda a louça do barco.

Na ilha de Yinnbye

Atracámos já a luz esmorecia. Um dos monges anunciou-nos:

– Kyaukpyu.

Sorrimos e fizemos sinal que não entendíamos birmanês, enquanto pegávamos nas mochilas.

– Kyaukpyu – repetiu ele a apontar para terra.

Pensei que nos dizia “chegámos”, mas reparei que algumas pessoas se preparavam para ficar no barco. Perguntei:

– Mrauk U?

– No. Kyaukpyu. Yinnbye.

Surpresa! A viagem ainda não tinha acabado; estávamos na ilha de Yinnbye, na povoação de Kyaukpyu, e o barco só partia na manhã seguinte para Sittwe. Pelo menos a palavra dormir readquiriu aqui todo o seu significado, e o animadíssimo mercado de peixe proporcionou-nos um excelente fim de dia, antes de cairmos na tarimba do “hotel”. No dia seguinte havia mais.

Esta segunda etapa levou-nos quase sempre por mar aberto, pelo que aproveitámos para incrementar os nossos conhecimentos de birmanês, jogámos a dinheiro com os militares do convés superior, fumámos charutos e dormimos a sesta, enroscados com os nossos vizinhos de cadeira. O barco chegou finalmente a Sittwe já de noite, com a cidade em plena escuridão, num daqueles cortes de energia tão vulgares no país. O trixó conseguiu levar-nos a uma pensão próxima do porto, através do mais puro breu, e instalámo-nos à luz de velas . E quando no dia seguinte pudemos ver onde estávamos, até ficámos contentes que tivesse sido assim…

O barco para Mrauk U partia de madrugada. Às seis da manhã já estávamos a tentar comprar bilhete mas, mais uma vez, era preciso ter os dólares certos. Só que desta vez não tínhamos. Não adiantou protestar; todos fugiam de nós como se tivéssemos lepra. Plano B: pedir delicadamente ajuda. Esperámos quase uma hora, enquanto o barco se ia enchendo de gente, até que um funcionário regressou com o nosso dinheiro, dizendo que não havia trocos. Deambulámos pelo cais, repetindo o nome do nosso destino a quem nos quisesse ouvir, enquanto o “nosso” barco levantava ferro.

Uns minutos mais tarde, ainda por ali andávamos desorientados, quando alguém nos apontou uma barcaça sobrecarregada, dizendo as palavras mágicas: Mrauk U. Afinal havia outro transporte! Não havia, sequer, lugar para nos sentarmos, mas isso já não tinha importância nenhuma: podíamos seguir viagem e ainda por cima pagar em kyats, sem problemas com os trocos. Partimos para Mrauk U de pé, enganando o cansaço em conversas geográficas com o capitão, que debitava países e capitais, sabia dizer Lisboa e Vasco da Gama com uma pronúncia perfeita.

Saímos do porto e percorremos a costa em sentido inverso, até um braço de mar que liga ao rio Aungdat Chaung. Depois, o barco rabeia por um labirinto de ilhotas e penínsulas, sempre muito próximo das margens. Tão próximo que é possível apreciar a vida nas aldeias. Todas parecem ter um pequeno ancoradouro, que se enche de vendedores a cada paragem do barco. Há bolinhos de coco, pastéis de arroz, peixe, ovos cozidos, bananas, laranjas, etc. As palmeiras dão lugar a extensos arrozais, manchados pelo castanho das casinhas de bambu e das manadas de búfalos de água. Raparigas esguias, vestidas com cores fortes, acartam água em cântaros de metal prateado; magotes de miúdos chapinam na água escura das margens e acenam aos passageiros; homens de lunghi arregaçado trabalham nos arrozais e pescam com redes redondas, metidos na água até à cintura. Mrauk U é apenas mais uma destas aldeias serenas, anunciada por uma colina de onde sobressaem quatro pagodes que já foram brancos, como quatro “cornetos” gigantes.

Chegada a Mrauk U

Aqui nasceram os primeiros reinos hindus e budistas do país, invadidos por exércitos tibeto-birmaneses a partir do século IX. Mrauk U atingiu a grandeza de cidade no século XV, quando os rios da zona permitiam a circulação a grandes barcos, que facilitavam as trocas comerciais. É inacreditável imaginar que a opulência desta pequena aldeia remota – capital do império arracanês no século XVII – era tal, que chegou a ser comparada com Londres e Amsterdão da mesma época. A sua frota naval dominava os golfos de Bengala e de Martabão, e Portugal não tardou a querer participar de toda esta fartura. Desde o século XVI que as primeiras embaixadas vindas de Goa tinham tentado, sem sucesso, obter facilidades no comércio e missionação da zona. Muitos portugueses foram ficando por ali, à cata de negócios mais ou menos convencionais; uns treinavam e engrossavam o exército arracanês – juntamente com samurais contratados no Japão -, muitos negociavam; outros, como o agostinho Sebastião Manrique, que andou pelo Arracão entre 1629 e 1637, tentavam espalhar a fé cristã. As suas descrições, na obra “Itinerário”, não deixam dúvidas sobre a riqueza da cidade e dos seus templos, e assinalam existência de duas igrejas e bairros cristãos. No século dezoito, a área foi integrada no reino birmanês, e no século seguinte, já sob o Raj britânico, a capital do Arracão mudou para Sittwe, remetendo Mrauk U para a serenidade bucólica em que hoje ainda vive.

Templos em Mrauk U

Os seus magníficos templos foram sendo construídos por vários soberanos, durante as épocas de opulência. Podemos encontrar cerca de setenta, escurecidos pelo tempo e recheados de imagens de Buda. Um dos mais imponentes é o Shittaung, espécie de fortaleza no cimo de uma pequena colina, que dizem ter sido construído para celebrar a vitória frente a um ataque dos portugueses, em 1535. O nome significa Templo das Oitenta Mil Imagens, as recolhidas pelo rei Minbin nos territórios budistas conquistados, e foi durante muito tempo a residência do sumo-sacerdote arracanês. A reforçar o peso de Mrauk U, a “cidade do Arracão” dos relatos portugueses da época, regista-se ainda a proximidade de Mahamuni, importante local de peregrinação budista. Mas a famosa imagem de Buda que os peregrinos procuravam encontra-se hoje em Mandalay, levada pelos birmaneses depois da invasão definitiva, no século XVIII.

Dukkanthein, Andaw, Sakyamanaung, Yadanapon e o pequeno Pitaka Taik, são apenas algumas das mais impressionantes construções, pelo porte e pela delicadeza do detalhe. Em forma de sino, simbolizando os vários elementos que compõem a harmonia universal, desdobram-se em corredores circulares decorados por imagens de Buda, iluminadas por pequenas janelas estrategicamente rasgadas na pedra. As salas são silenciosas, íntimas e frescas, por contraste com o sol escaldante e a luminosidade do exterior. Todas as colinas têm a sua paya, com vistas fantásticas sobre o arvoredo cerrado e os rios que o entrecortam. A aldeia fumega lá no fundo, sem ignorar os seus templos. As pessoas visitam-nos, cavalos pastam em redor, a água é retirada dos seus poços, mulheres fumam charutos na sua sombra, enquanto dão de mamar aos filhos.

Descobertos os templos, faltava a vontade de partir. O restaurante Moe Cherry, frequentado por franceses da Action Contre la Faim e pelos raros turistas que por aqui aparecem, apaparicava-nos diariamente com bananas em molho de coco, delicados cogumelos selvagens, arroz com amendoim, enfim, uma chantagem gastronómica a que era difícil escapar. As crianças procuravam-nos para brincar, o dono do bungalow  Pleasant Island emprestava-nos a bicicleta para procurarmos os templos mais afastados, e cada bocado do dia era saboreado com prazer. De manhã percorríamos o mercado, indagando sobre a fedorenta pasta de peixe castanha, comprimida em medalhões que se diluem em temperos, debruçando-nos sobre os baldes do fastfood local, composto por gordas larvas brancas e enormes escaravelhos negros, já prontos a comer. Ao fim da tarde, mirávamos os barcos no ancoradouro, ou o balé de raparigas elegantes, que traziam arroz em cestos e os despejavam, construindo uma gigantesca e movediça pirâmide dourada, cada dia maior.

Desaparecidas as igrejas e os cristãos, fica-nos o contacto com uma cultura que permanece quase imutável desde a época em que portugueses aqui chegavam, com fins menos desinteressados que os nossos. “Estas gentes na sua maioria (…) tratáveis, meigos e afáveis” (…) “recebem com grande amor todos os que aí chegam”. Confirmam-se as palavras de Sebastião Manrique, e a descoberta destes templos longínquos acabou por deixar um sabor terno, de saudade tropical.

 Nota: As transcrições da obra de Sebastião Manrique foram retiradas da Breve Relação dos Reinos de Pegu, Arracão, Brama e dos Impérios Calaminhã, Siammon e Grão Mogol, publicada pelas edições Cotovia.

Texto publicado na revista Grande Reportagem


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Manuela Pinto Fevereiro 19, 2015 às 23:29

Olá,

Visitei Myanmar em 2012, e fiquei desejosa de lá voltar e ir a locais como este, que não façam ainda parte dos circuitos turísticos habituais – gostava de saber quando foi esta viagem, já que pelos relatos que tenho ouvido este país está a mudar a uma velocidade vertiginosa….

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Comedores de Paisagem Fevereiro 20, 2015 às 16:19

Manuela, esta viagem já foi feita há mais de 12 anos e não voltei a Mrauk U… mas a verdade é que os sítios remotos, como este, são os últimos a mudar. Vale a pena ir lá – e espero voltar no próximo ano! 😉

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Paulo Azevedo Fevereiro 7, 2017 às 18:14

Ana, é só para dizer que adorei esta preciosidade de texto!

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Comedores de Paisagem Maio 9, 2017 às 10:44

oooh Obrigada!

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