O Bosque Encantado

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Um dos nomes mais conhecidos da literatura chilena é o poeta Pablo Neruda. Em Confesso que Vivi, é em prosa que nos conta os lugares por onde passou e, sobretudo, nos aponta com os seus olhos de poeta os pequenos segredos da paisagem do Chile, sua pátria e refúgio.

Flores do bosque austral

O Chile de Neruda em Confesso que Vivi

Ninguém ama mais a sua pátria, ninguém é capaz de maiores acerbos de nacionalismo desbragado do que um emigrante. Ou pior ainda, um refugiado. Neruda foi ambos. Primeiro um migrante local, separando-se da família para estudar na capital, Santiago; depois cônsul do Chile em vários países do Oriente e Europa e, finalmente, obrigado a fugir por razões políticas, instalando-se em Paris como refugiado até poder regressar. Em Confesso que Vivi, o clamor das raízes, o chamamento do solo pátrio, são o fio condutor de uma paixão poética e também política que nos arrasta entre Temuco, Santiago, Isla Negra e daí pelo mundo fora, para depois regressar.

Temuco é a cidade mais importante da Araucania, região do sul do Chile, terra de “gente ferroviária e madeireira”, “bravia e tempestuosa”. Ao tempo da infância do poeta, em inícios do século XX, o ambiente era o de uma cidade de pioneiros, com as suas casas por acabar, quase provisórias, com “barricas, alfaias, arreios e objectos indescritíveis” na entrada. Nos dias de hoje, as ruas quadrangulares e a humidade da chuva, que se cola às paredes e lhes muda a cor, não tornam a cidade num dos sítios mais atraentes do país. A Feria Libre, o mercado tradicional, onde chegam os índios mapuches das aldeias vizinhas nas suas carroças, carregadas de legumes e pinhões gigantes das enormes araucárias que deram nome à província, é bem mais pitoresco do que as já costumeiras praças, com as habituais estátuas ao colono, ao “soldado da pacificação” e ao “povo indígena”. Os mapuches não deram sossego aos espanhóis até ao século XVII, reduzindo-lhes periodicamente as povoações a cinza; em contrapartida, “contra os índios todas as armas foram usadas generosamente: o disparo da carabina, o incêndio das cabanas; e, depois, de modo mais paternal, empregou-se a lei e o álcool.” Ainda hoje, os mapuches parecem viver na mesma pobreza dos seus antecessores.

A mudança para Santiago fez-se na adolescência, para estudar na Universidade. “o comboio ia dos campos com robles e araucárias e das casas de madeira molhada até aos álamos do centro do Chile, às poeirentas construções de adobe. Fiz muitas vezes a viagem de ida e volta entre a capital e a província, mas sentia-me afogar sempre que saía dos grandes bosques, da selva maternal”. Nem sempre feliz, com permanentes problemas monetários e “ritualmente vestido de negro”, Neruda e outros amigos dedicavam-se à poesia com entusiasmo, discutindo e recitando em público, em cervejarias e tabernas. Mesmo nesta época, as raízes da sua escrita situavam-se na sua Araucania natal; “Os trechos de Santiago foram escritos entre a Rua Echaurren e a Avenida de Espanha (…), mas o panorama de fundo é sempre o das águas e o das árvores do Sul”.

Dominada pela chuva que cai durante todo o ano, não admira que a paisagem araucana seja farta em verdes, dos prados ondulados pontuados por quintas e pequenas aldeias aos frondosos bosques, cheios de folhagens desconhecidas para quem chega do hemisfério Norte. “Os longos Invernos do Sul meteram-se-me até à medula na alma, e acompanharam-me terra fora. Para escrever eu precisava do voo da chuva sobre os telhados…”. É entre chuvadas que se percorrem as aldeias e os lagos que abundam na zona, como Pucón e Villarica, à sombra do vulcão fumegante como mesmo nome. Transformadas em populares estâncias de férias, as pequenas vilórias ganharam cores garridas nas casas e uma multidão de agências que anunciam passeios no bosque e subidas à cratera do vulcão (caso o tempo permita), aluguer de barcos, cavalos, etc. Se considerarmos a conjugação do clima com a paisagem e o casario, podemos pensar que estamos na Alemanha, algures entre a Floresta Negra e Munique. E não faltam as confeitarias que anunciam o famoso kuchen alemão de frutos silvestres, provando que os colonos germânicos aqui estabelecidos desde o século XIX influenciaram definitivamente a zona.

O Bosque Encantado

A floresta chilena está protegida por vários Parques Nacionais, como o Huerquehue, o Villarica e o Puyehue. E, como diz Neruda, “Quem não conhece o bosque chileno, não conhece este planeta.” A neve deixa sempre pintalgados os vulcões da zona, que se erguem bem acima do matagal verde da floresta; Llaima, Villarica e Osorno, são três cones montanhosos exemplares, com o ocasional penacho de fumo a lembrar que há vida no seu interior. A terra é escura, coberta de pedras e areia vulcânica e os brincos de princesa têm o tamanho de árvores, caindo romanticamente sobre os abundantes lagos e rios que descem dos Andes. Por todo o lado, como uma cortina esverdeada, “os líquenes com a barba de Inverno pendendo dos rostos inumeráveis do bosque”.  “Sob os vulcões, à beira dos cumes nevados, entre os grandes lagos, o fragrante, o silencioso, o emaranhado bosque chileno… Afundam-se os pés na folhagem morta, estala um ramo quebradiço, os gigantescos raulies erguem a sua encrespada estatura, um pássaro da selva fria atravessa, esvoaça, detém-se na sombra das ramarias. (…) É um mundo vertical – uma nação de pássaros, uma multidão de folhas…” Este foi o caminho do poeta em fuga para a liberdade, quando a ditadura de Videla o perseguia. Ajudado por um cacique mapuche e por amigos do lado chileno e argentino, entabulou um percurso perigoso pela selva impenetrável, atravessando “aquela grande catedral de natureza selvagem”. Do outro lado da fronteira, esperava-o a terra argentina de San Martín de los Andes – e a liberdade.

No Chile, Neruda dividiu-se entre as suas casas de Valparaíso, de Santiago e de Isla Negra. Todas estão abertas ao público, mas a mais conhecida e bem recheada, ainda com a mobília e as colecções de veleiros engarrafados e carrancas de proa do poeta, é a da Isla Negra. Aqui passou Neruda grande parte do seu tempo, depois do regresso à pátria e antes da sua instalação em Paris como cônsul, pouco antes da sua morte. Mas apesar da escolha deste lugar próximo do mar para construir um dos seus ninhos predilectos, os cânticos de louvor à natureza marítima do local nunca atingiram a paixão com que cantou “as terras fronteiriças do Chile”, que “infiltraram as suas raízes na minha poesia e nunca puderam sair dela.” O encanto da floresta austral, da Araucania à Região dos Lagos, permanece sempre como pano de fundo: “A minha vida é uma longa peregrinação que anda sempre às voltas, que retorna sempre ao bosque austral, à selva perdida.”

Pablo Neruda

Neftalí Ricardo Reyes Basoalto nasceu em Parral (Chile), em 1904. O pseudónimo Pablo Neruda nasceu mais tarde, do receio que o poeta tinha em enfrentar o pai, que se opunha a ter um filho dedicado à poesia. Conheceu a poetisa Gabriela Mistral como directora do liceu onde estudou, em Temuco, onde começou também a colaborar num jornal e a ganhar prémios de poesia. Continuou estudos em Santiago, destinado a seguir uma carreira de professor de francês. Com apenas vinte anos atinge a fama nacional e decide dedicar-se à literatura como profissional. Em 1927 começa o seu périplo pelo mundo como cônsul do Chile, que o levará, entre outros países, a Myanmar (Birmânia), Sri Lanka, Índia, Indonésia, Espanha, México, Argentina, Peru, China, Arménia, Rússia, Itália, Uruguai, Brasil, Polónia, Hungria, Guatemala, quer profissionalmente quer em viagens de âmbito pessoal. Pelo meio ficaram muitas estadias no Chile, sobretudo nas casas de Santiago e Isla Negra, e três casamentos. Amigo de Garcia Lorca, dedica-lhe Residencia en la Tierra após o seu assassínio durante a guerra civil espanhola. É perseguido e obrigado a fugir do país pela ditadura de González Videla e chega a candidato a Presidente da República – proposto pelo partido comunista, ao qual tinha aderido em 1945 -, antes de Allende formar uma frente de unidade nacional, que veio a apoiar com entusiasmo. Nos últimos anos de vida foi embaixador do Chile em Paris. Morreu dias depois da morte de Allende durante o ataque das tropas de Pinochet ao Palacio de la Moneda, em 1973.

“A poesia é um ofício”

Com Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, o seu segundo livro de poesia, Neruda alcançou a fama que nunca mais o abandonou. Embora não tenha escrito exclusivamente poesia – Anillos e o livro de memórias Confesso que Vivi são disso exemplo -, toda a sua escrita é poética e toda a sua obra atravessada por uma vontade de testemunhar a luta que é viver. Guerras emocionais, políticas, sociais, um combate permanente em busca da felicidade, para às vezes a vir encontrar nas coisas mais simples e próximas, no amor e no trabalho. Funda várias revistas poéticas e produz poesia torrencialmente;  Canto General e Residencia en la Tierra são, provavelmente, as suas obras mais conhecidas.

Para além dos inúmeros prémios de poesia, nacionais e estrangeiros, que lhe foram sendo atribuídos, recebeu também o Prémio Nobel em 1971, dois anos antes da sua morte. Sobre a súmula da sua obra, a propósito de Canto General, o poeta diria que é “o seu dever essencial exprimir o significado geográfico e nacional da nossa América. Unir o nosso continente, descobri-lo, fazê-lo compreender, reencontrá-lo”. Em Portugal, são várias as editoras que vão publicando a sua obra; Confesso que Vivi tem uma edição de bolso da Europa-América.

Floresta austral

Palavras

“Ali, é certo, as grandes árvores eram por vezes tombadas por setecentos anos de vida poderosa, ou arrancadas pelo furacão, ou queimadas pela neve, ou destruídas pelo incêndio. Senti muitas vezes cair na profundidade da floresta as árvores titânicas: o roble que tomba com estrondo de catástrofe surda, como se batesse com mão colossal às portas da terra pedindo sepultura. As raízes, porém, ficavam a descoberto, entregues ao tempo inimigo, à humidade, aos líquenes, ao aniquilamento progressivo.

Nada mais belo que aquelas grandes mãos abertas, feridas e queimadas, que numa vereda do bosque nos indicam o segredo da árvore enterrada, o enigma que a folhagem mantinha, os músculos profundos do domínio vegetal. Trágicas e hirsutas, mostram-nos uma nova beleza: são esculturas da profundidade – obras-primas secretas da natureza.”

“Parece-me que se perdeu aquela arte de chover que se exercia como um poder terrível e subtil na minha Araucania natal. Chovia durante meses inteiros, anos inteiros. A chuva caía em cordas, como longas agulhas de vidro que se partiam contra os telhados ou chegavam em ondas transparentes de encontro às janelas; e cada casa era um navio que dificilmente atingia o porto naquele oceano de Inverno.

Esta chuva fria do Sul da América não tem as rajadas impetuosas da chuva quente que cai como um látego e passa, deixando o céu azul. Pelo contrário: a chuva austral tem paciência e continua, sem interrupção, a cair do céu de chumbo.”

 

Adaptado de texto publicado no magazine Fugas, do jornal Público


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isabel Setembro 27, 2012 às 9:51

está mesmo bonito. Neste tempo de inquietação, uma grande paz nasce das tuas fotos e dos teus textos. obrigada.

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ana Outubro 1, 2012 às 18:38

Obrigada, Isabel. Um dia, quem sabe, uma rota do Bashô pelo Japão aparecerá aqui…

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