A cidade de Konya é um dos mais importantes centros religiosos da Turquia, mas apesar disso, nada nos lembra o fundamentalismo islâmico que tomou novo fôlego em tantos pontos do planeta. Ler o Al-Matnawi, obra de Rumi, o seu mais famoso cidadão, lembra-nos que a tolerância faz parte de todas as religiões.
Uma visita ao museu de Rumi, em Konya
Em Konya, todas as ruas vão dar ao Mevlana Muzesi – o Museu do Nosso Mestre, traduzindo à letra. A sua cúpula em gomos de forma cónica, erguendo-se como uma longa flauta dervixe sobre o túmulo do Mevlana, vê-se de quase toda a cidade. E ainda bem; a sua estrutura original e o seu verde intenso decoram o horizonte com muito mais graça do que qualquer um dos prédios modernos cor de cimento que invadiram a cidade. Apesar de se situar numa das mais férteis zonas do país, o arvoredo de Konya parece ter-se concentrado todo em volta do Museu do Mevlana e no parque do outro extremo da avenida. As ruas estão cheias de pequenos restaurantes e lojas a abarrotar de recordações para turistas, dos rosários aos bules para chá, que vão diminuindo de número em círculos concêntricos à medida que nos afastamos do museu, transformando-se em modernas lojas de roupa e electrodomésticos.
Juntamente com a cidade bíblica de Sanliurfa, Konya é considerada uma das mais conservadoras do país, verdadeiro bastião islâmico inclusive a nível político. Mas a tolerância, sobretudo para com os estrangeiros, é exemplar. O seu interesse resume-se a este lugar místico onde Rumi fundou a sua ordem de dervixes, ascetas muçulmanos cujo nome vem do persa dervich, que significa pobre. Quem vem a Konya fá-lo para visitar o lugar onde viveu e está sepultado, única atracção numa cidade turca comum, com a costumeira combinação de ruas muito comerciais e gentes acolhedoras. Apesar de ser um centro religioso para todo o mundo islâmico que atrai anualmente milhares de peregrinos, nada lembra as mesquitas fechadas a não-muçulmanos e os olhares duvidosos sobre os estrangeiros, como tantas vezes acontece em outros países. A cidade conta mesmo com uma igreja católica em funcionamento, como coroa de glória do espírito aberto que parece reinar. E duas centenas de quilómetros a Sul, ficam as luxuosas estâncias do Mediterrâneo, onde milhares de turistas turcos e ocidentais vão a banhos.
As construções seljúcidas, como a Alaeddin Camii (Mesquita de Aladino), parecem imitar as suas tendas armadas numa estepe árida. Este povo nómada foi senhor da zona no século XIII, depois de algumas guerras contra Bizâncio e os Cruzados. Embora sem conceito de cidade-capital, acabaram por fazer de Konya a morada dos seus sultões, um dos quais, Aladino Keykubad, recebeu cordialmente Yalal Al-Din Rumi e seu pai, vindos de Balk, no Afeganistão.
A vida de Rumi foi dedicada à contemplação e à escrita de obras de teor religioso que, apesar de nunca terem sido reconhecidas como islâmicas ortodoxas, são utilizadas nas mesquitas e nos estudos religiosos xiitas. A imagem mais conhecida associada ao Mevlana é a dos belíssimos festivais protagonizados pela ordem que fundou, a dos Dervixes Rodopiantes – também conhecidos por Mevlevi – que têm lugar todos os anos entre 10 e 17 de Dezembro. Ao contrário do que normalmente é prescrito pelo islão, Rumi defendeu a música e a dança “de pião”, a sema, como um meio para abandonar o corpo e unir-se de forma mística com Deus. Os movimentos, as roupas dos dançarinos, a música planante tocada por flautas de cana, tudo tem um simbolismo religioso. Antes de pertencerem à Ordem, os noviços passavam 1001 dias fazendo trabalhos físicos, como trabalhar nas cozinhas, combinando o esforço com a aprendizagem religiosa e a contemplação. Só depois eram admitidos por completo, podendo então regressar à vida secular, empregar-se e mesmo casar, sem deixarem de ser Dervixes Rodopiantes.
Uma visita ao museu e túmulo do Mevlana é sempre um ponto alto em qualquer viagem à Turquia. O edifício, rodeado de canteiros e jardins, é uma ilha de paz no bulício do tráfego. Logo à entrada ficam as cozinhas e as celas dos dervixes. No antigo salão onde se praticava a sema, há agora uma boa amostra de livros antigos ricamente cobertos de iluminuras – como o Al Matnawi original -, para além de uma colecção de objectos que pertenceram a Rumi. A sala dos túmulos é um lugar muito especial, onde sabe bem ficar algum tempo, deixando-nos envolver pela atmosfera relaxante – e é isso que muitos fazem, sentando-se no chão, respirando o ar perfumado. A luz é suave e a música, composta por cânticos e melodias ondulantes, é propícia à meditação. Os túmulos do Mevlana e do seu pai estão cobertos de brocados e veludo, encimados pelo tradicional chapéu cilíndrico de pêlo de camelo. As paredes brilham, pintadas em tons de vermelho, azul e ouro. As alcatifas abafam os sons dos pés descalços dos peregrinos que vêm rezar e dos que apenas visitam o Museu. Há quem reze com fervor, quem pose para fotografias com a família e quem visite o lugar de guia na mão, conferindo as peças expostas. Apesar de ser um local sagrado, verifica-se que há mais turistas estrangeiras de lenço na cabeça, levadas pela vontade de não faltar ao respeito, do que propriamente turcas, certamente mais bem informadas sobre a infinita tolerância pregada por Rumi.
Yalal Al-Din Rumi nasceu em Balk, no actual Afeganistão, em 1207, e morreu em Konya, na actual Turquia, em 1273. Tornou-se conhecido por Mevlana e criou a Ordem dos Dervixes Rodopiantes, que protagonizam uma dança mística de união com Deus. Na vida diária, os seus ensinamentos incitam à procura da beleza e da verdade, à prática da caridade e da tolerância infinita. Mevlana condenou a escravatura, pregou a monogamia e a importância das mulheres na sociedade civil e religiosa. Atacou a ostentação e a completa reclusão monástica, defendendo que a contemplação e as práticas místicas dos dervixes são suficientes para nos libertar das ansiedades da vida mundana.
A Escrita Sufi
Embora Rumi não fosse um escritor mas um líder espiritual, é considerado um dos grande poetas de língua persa. A sua obra abrange odes místicas, como as do “Divan-i Shams-i Tabriz”, e ruba’i, forma arábico-persa composta por quatro versos, compilados em “Rubaiyat”. O “Al-Matnawi”, que abrange vários volumes, é considerada como uma obra-prima da poesia religiosa. São cerca de 45.000 versos que incluem anedotas, lendas e contos folclóricos, bíblicos, hindus e budistas, para além de citações do Corão. Todas as formas inspiraram Rumi, na sua tentativa de ensinar os caminhos para que a alma se reúna a Deus, antes ou depois da morte. Em Portugal, li as Parábolas Sufis extraídas do Al-Matnawi, publicadas pela Fim de Século Edições.
A foto dos dervixes rodopiantes foi gentilmente cedida pela Carla Mota, autora do blogue Viajar entre Viagens.
Excelentes conteúdos históricos e culturais!. Obrigado a todos os idealizadores que tanto trabalharam, na elaboração desta brilhante página!
José, agora já começo a corar com tanto elogio nos posts! Muito obrigada!