Foi uma viagem de quatro dias para conhecer o Caminho Português Interior de Santiago. Prazo curto para tanta beleza, na paisagem e nas cidades monumentais, tanta aldeia genuína com gente acolhedora. Um Caminho que vai até Santiago de Compostela passando por uma paisagem protegida pela UNESCO – o Douro Vinhateiro – e acompanha parte de uma das estradas nacionais mais longas do mundo – a já famosa N 2.
“Este é o lugar mais lindo do mundo”, anuncia o nosso guia por essa manhã, ao passarmos junto à aldeia de S. Miguel de Lobrigos, em Santa Marta de Penaguião.
A paisagem não me deixa contrariá-lo: em pleno Douro Vinhateiro, aquele bloco de casinhas brancas e homogéneas, coroadas pelo pico da igreja, aninhadas em socalcos que o fim do verão já pinta de tons muito claros, dificilmente pode ser ultrapassado na escala da beleza, em termos de paisagem humanizada. Podíamos estar a caminhar dentro de uma pintura. O sol ainda não doía, os montes estavam vestidos de um verde-pálido, o céu de um azul liso…
Não é difícil entender este amor à terra quando ela junta tanta beleza e fartura. Durante o Caminho fomos recebendo uvas e outra fruta da época – “já leva alguma coisa boa daqui!” -, dois dedos de conversa, mesmo de passagem, sempre seguidos pelos olhares curiosos de quem não vê muita gente passar. O que é uma pena.
Sem ter a fama do caminho Central ou do da Costa, o Caminho Português Interior de Santiago promete ser “O Caminho” para os que gostam sinceramente de caminhar, e procuram tempo e espaço para um percurso interior – de si próprios e do país – em vez do convívio diário com outros peregrinos. É, também, o Caminho dos que pretendem mergulhar verdadeiramente na natureza: são mais de 200 km de paisagens diversificadas, de Viseu a Chaves e daí à fronteira com Espanha, onde se funde com o caminho Moçárabe, ou Via de La Plata.
O Guia do Peregrino fornecido nos Postos de Turismo locais assinala onze etapas até território espanhol, sendo que as marcadas com um tremendo “Muito Difícil” se encontram na primeira metade do Caminho, entre Viseu e Castro Daire, Lamego e Santa Marta de Penaguião. O traço comum são as montanhas, mais ou menos escarpadas. Sendo um percurso mais exigente do que os outros, este é, por isso mesmo, um desafio físico e mental. Vai alternando paisagens ora rudes ora mimosas, interrompidas por cidades históricas, com a dose certa de monumentalidade para prender por lá o caminhante durante um par de dias.
Viseu, por exemplo, onde tudo começa. Ao lusco-fusco, os meus passos ecoaram nas ruas empedradas, entre a rua Direita e a Catedral, em pleno Centro Histórico, onde no dia seguinte iniciámos o Caminho. Com ou sem Viriato, depende das opiniões, a nossa história mora aqui, pintada por Grão Vasco e construída pelos homens com blocos de granito. E quem é que não gosta de passear numa cidade onde as pessoas ainda dizem bom dia aos desconhecidos que passam na rua?
Nas aldeias sim, é comum trocar sorrisos, ser interpelado, e até há quem ofereça o que produz aos caminhantes desgarrados – “Pois se o homem disse que nunca comeu batata tão boa!” -, aos falsos peregrinos que por aqui passam para beber os ares e lavar os olhos na paisagem, depois de anos passados entre prédios e árvores raquíticas. Caminhantes que se deliciam, na zona de Castro Daire, com a história de Moura Morta, as rampas de terra que mergulham entre florestas para desembocar em aldeias acolhedoras e perdidas, na beleza – e pureza – do rio Paiva, que se atravessa sobre as tradicionais poldras, os nomes estranhos, como as Cinco Tetas da Serra de Montemuro, certamente a visão de um pastor solitário…
Lamego é uma joia de pedra. Vista da Sé, do alto do Castelo ou da escadaria do Santuário de N. Sra. dos Remédios – ou até, de espumante na mão, da bela esplanada das caves Raposeira – a cidade parece ter parado no tempo. No sentido arquitetónico, obviamente, tal é o desfile de casas brasonadas e acasteladas, conventos e igrejas. Um verdadeiro cenário vivo para um filme de capa e espada situado em séculos passados…
Aqui já estamos junto ao rio Douro, onde a paisagem amansa e se entra num mundo muito particular: o território do “vinho fino.” Microclima, microcultura, e talvez a zona mais privilegiada do interior, em termos de turismo. Penetramos no Douro Vinhateiro, paisagem protegida pela UNESCO, com uma história muito bem contada no Museu do Douro, na cidade de Peso da Régua. “Gostaram da visita?” perguntava, sorridente, o guia que nos acompanhou no museu e na degustação oferecida no jardim exterior. Como não gostar de uma apresentação entusiasmada e entusiasmante deste vinho, que tem o nome do Porto, mas berço entre a Régua e Santa Marta de Penaguião?
Chegados a Vila Real, os caminhantes reparam no seu ar mais moderno, embora ainda guarde algumas ruas tradicionais bem perto do centro; mas há provas firmes da sua antiguidade, por exemplo no Museu da Vila Velha, que oferece uma vista privilegiada sobre o parque e o passadiço do rio Corgo, um poço de verdura no coração da cidade.
O Caminho continua depois em direção a Vila Pouca de Aguiar e transforma-se numa excelente ciclovia, longa e plana, debruada pelas pregas da serra do Alvão e da Padrela. Os caminhantes sem pressa têm vários trilhos para percorrer, o complexo mineiro de Tresminas, a lagoa do Alvão – e um bom punhado de antigas escolas primárias, transformadas em albergues bem equipados para pernoitar. Aqui a terra é fria, mas a água é quente: as termas de Vidago e Pedras Salgadas estão próximas, e a água medicinal que brota das suas fontes continua a fazer as delícias dos peregrinos, daqui até Aquae Flaviae, a última cidade do Caminho em território português.
Falamos de Chaves, que nos recebe com uma fotografia de postal e nos remete diretamente para as suas raízes romanas: a ponte de Trajano, sobre o rio Tâmega, que o caminhante tem de atravessar para seguir caminho. Pouco à frente ficam as apetecíveis termas – as romanas e as modernas – e subindo a rua Direita (porque é que as ruas Direitas são sempre tortas?) é todo um desfile de arquitetura. Aqui já se sai do reino da pedra, com casas mais coloridas e varandas que serviam, diz o nosso guia “para assistir aos julgamentos na praça do pelourinho”. É aqui, com um brinde da água termal que sai da buvette pública, que fazemos as despedidas.
Foi uma viagem de quatro dias para conhecer o Caminho Português Interior de Santiago. Prazo curto para tanta beleza, na paisagem e nas cidades monumentais, tanta aldeia genuína com gente acolhedora. Um Caminho que vai até Santiago passando por uma paisagem protegida pela UNESCO e acompanha parte de uma das estradas nacionais mais longas do mundo – a já famosa N2. Quatro dias, quanto a mim, é o que merece qualquer uma das suas etapas, com a imensidão de lugares nos arredores para explorar. É o tempo necessário para ficar num dos pequenos albergues-escola, como o de Moura Morta ou o de Parada de Aguiar, a ouvir o vento nas árvores, a percorrer os trilhos de montanha e a ver o sol subir e baixar com a lentidão de um caminhante atento.
E só apetece fazer uma coisa: voltar.
* Conheci o Caminho Interior numa viagem organizada pela Associação de Municípios que o percorre: Viseu, Castro Daire, Lamego, Peso da Régua, Santa Marta de Penaguião, Vila Real, Vila Pouca de Aguiar e Chaves. Realizada em conjunto com mais dez bloggers da ABVP (Associação de Bloggers de Viagem Portugueses), foi uma viagem de descoberta que vale apenas como aperitivo de uma região que vale a pena em tudo.
Links úteis:
CPIS – Caminho Português Interior de Santiago (cpisantiago.org)
Um gosto ler as tuas impressões sobre o Caminho do Interior. Passou-me essa história das Cinco Tetas da Serra de Montemuro (mas adorei a tua interpretação)!
Ainda bem que gostaste…este é um blog “inspiracional” (até nas interpretações :), e a verdade é que fiquei mesmo com vontade de fazer a coisa com calma…
Muito bom. Sempre a aprender! Depois de tantos anos a percorrer estas terras, desconhecia que há trilhos que conduzem os caminhantes a Santiago. Parece que todos os caminhos vão lá dar! Fico tentada…
Ora viste?! Há, e valem a pena! 😉
Um testemunho do Caminho que parece um poema em prosa. Foi um prazer lê-lo, Caminhante!
Obrigada! 🙂 A ideia é inspirar à viagem…