Um chá no deserto (ou noutro lado qualquer)

Coisas do Mundo / Destinos

Da África à Ásia, passando pelo Médio Oriente, é impossível terminar uma viagem sem um convite para o chá, verdadeiro símbolo da hospitalidade e do acolhimento em grande parte do planeta. Bebido por milhões, é produzido em locais particulares como Darjeeling (Índia) e Ella (Sri Lanka), onde visitámos os jardins que produzem dois dos melhores chás do mundo.

Rituais do Chá

Um punhado de brasas e um bule minúsculo com água, mesmo de origem duvidosa, são o princípio de tudo. Depois aparecem dois pequenos saquinhos de plástico, um com açúcar e outro com as folhas verdes do chá, que retiram com a ponta dos dedos e deixam cair na água um a seguir ao outro. A água levanta fervura várias vezes e, de cada vez, a manga puxada para baixo a servir de pega, o bule é levantado e poisado nas brasas de modo a que não extravase mais que algumas gotas. Pequenos copos, da altura de um dedo, são passados por água. Depois deixa-se cair o chá lá dentro, num jorro que vem do alto, antes de o devolver de novo ao bule e à fervura. Por fim prova-se e distribui-se, repetindo o jorro que areja o chá antes de cair no pequeno copo de vidro. Mal começamos a beber, o bule é limpo e recomeça-se, para que os copos se encham duas ou três vezes. Este é um ritual repetido em todo o norte de África; pouco sofisticado, quando comparado com o complexo ritual japonês, mas cheio de significado de hospitalidade e partilha – a desculpa perfeita para a pausa e o diálogo.

Diz-se que o chá apareceu por acaso na China, quando uma doença obrigava a ferver a água antes de a consumir e algumas folhas caíram na fervura; o gosto agradou, o consumo instalou-se, a produção generalizou-se. Embora os chineses digam que o chá veio da Índia, o seu consumo já integrava o seu dia-a-dia no século IX. Na verdade, pensa-se que esta planta arbustiva é originária das zonas dos Himalaias entre os dois países e já aí era cultivado por volta de 2.700 a.C. Durante o Império Britânico, os ingleses iniciaram a sua plantação maciça nas montanhas do norte da Índia, no estado do Assam e em Darjeeling, onde agora tem origem cerca de 70% da produção do país. Antes, só as tribos locais o apreciavam, mas depressa se tornou a bebida da sociedade e mesmo uma espécie de bebida nacional em muitos países. Na Europa, o seu consumo só se generalizou depois do século XV, quando os portugueses chegaram ao Oriente por mar e trouxeram a erva e o nome chinês, que ainda hoje usamos: chá, tal e qual. Exportámos para a França e para a Holanda, para além de o introduzirmos na corte inglesa (juntamente com a compota de laranja) através da rainha D. Catarina de Bragança, com os resultados que hoje todos conhecemos…

Na Índia misturam-lhe especiarias ou fervem-no com leite em vez de água; os marroquinos chamam-lhe “uísque marroquino” e bebem-no com ramos de menta inteiros enfiados nos copos e carradas de açúcar; no norte da Tunísia é frequente juntarem-lhe alguns pinhões. Cada povo desenvolveu uma prática particular, de acordo com os seus gostos, mas poucos dispensam o uso, ainda que ocasional, desta bebida: o Paquistão, por exemplo, que nem sequer é produtor, gasta uns duzentos milhões de dólares por ano em chá, muito dele importado do Quénia. Neste momento são consumidas diariamente cerca de dois milhões de chávenas de chá por dia, fazendo desta a bebida mais consumida no mundo, logo a seguir à água.

Darjeeling, Índia

Em Darjeeling, o monte Kangchenjunga, o terceiro mais alto do mundo, estende-se no fim da paisagem: uma enorme massa branca que a passagem das nuvens transforma de vez em quando numa miragem indefinida. As casas, altas e periclitantes, manchadas pela humidade, equilibram-se nas cristas dos montes e dos lados das ladeiras íngremes e curvilíneas que formam as ruas da cidade. Estamos numa outra Índia, onde não chega o calor abafado da planície e a vista abrange montes e vales profundos cobertos de verde. Passamos pela estação de comboio e pelo The Mall, a rua comercial, para chegar a Chowrastra, a grande praça central, o coração da cidade, onde se concentram restaurantes e lojas variadas, da bijutaria aos livros. Mais acima fica a Observatory Hill, com um templo budista e um belíssimo panorama sobre os Himalaias e o mar de arbustos que nos rodeiam.

A cidade fica a mais de dois mil metros de altitude, envolta em nuvens e plantações de chá alinhadas e aparadas à mesma altura – cerca de um metro -, de um verde quase luminoso. Não estamos na altura das colheitas, por isso podemos passear sem destino entre as filas de arbustos que começam quase na porta das casas. Alguns dos caminhos que ligam Darjeeling aos pequenos aglomerados mais distantes, ou ao ocasional mosteiro budista, cortam pelo meio do chá e são frequentados desde manhã cedo, quando bandos de estudantes de uniforme colegial e olhos rasgados, a lembrar o Nepal ali tão perto, passam a caminho da escola.

Visitámos uma fábrica, com a sua maquinaria de secagem e armazenamento, onde o perfume das folhas secas era um pouco intenso demais. Lá fora, os arbustos orvalhados guardavam as pequenas camélias brancas, delicadas e subtis. Tornou-se conhecido como o “champanhe do chá” e existem aqui mais de sessenta plantações – que aqui se chamam, muito simplesmente, jardins -, mas quando o seu maior comprador, a União Soviética, se desagregou, as vendas ficaram em risco. E entre o investimento na substituição dos arbustos velhos e o interesse por um negócio mais rentável como o cardamomo, especiaria com os mesmos requisitos geográficos do chá, alguns produtores foram abandonando o velho vício dos ingleses. Para já, a produção mantém-se e a qualidade – dizem – também. Mas mesmo sem chá, Darjeeling será sempre uma exótica cidade-ilha do subcontinente, que se levanta com charme nas encostas mais baixas dos Himalaias.

Ella, Sri Lanka

O interior do Sri Lanka, conhecido por “hill country”, é um mundo à parte. A esta altitude já não chega o calor das zonas costeiras, nem a aridez das planícies do norte: o tempo é de Primavera constante. Para chegar a Ella, as estradas contorcem-se sobre colinas cobertas de plantas de chá, com algumas quedas de água a quebrar a monotonia das linhas ondulantes. Subsistem amostras arquitectónicas do colonialismo britânico, que gerou fortunas à custa do hábito do chá das cinco e da mão-de-obra barata importada da Índia.

Os métodos da apanha não parecem ter-se modificado: ranchos de mulheres de trajes coloridos avançam pelas plantações e poisam a longa cana que levam consigo na parte mais dura dos arbustos; acima da cana fica a zona dos rebentos e folhas mais tenras. Com movimentos rápidos e quase automáticos, e uma delicadeza que deve levar anos a adquirir, arrancam os rebentos e as duas ou três folhas em redor apenas com dois dedos, o indicador e o polegar, tentando ultrapassar a quota diária de sete quilos – cerca de cinquenta mil cortes por dia. Ao sol e à chuva, que vai lavando os arbustos todo o ano, avançam depois para as balanças, onde o capataz observa a apanha e pesa, anotando num caderno o trabalho de cada uma. São jornadas de oito horas, três épocas por ano; metidas nos arbustos até ao peito, vão conversando e lançando as folhas para dentro do cesto, cobrindo-se com plásticos quando a chuva é mais forte.

De Ella a Kandy sucedem-se as plantações, mais pequenas e distribuídas por uma paisagem delicada, diferente da que encontramos nos Himalaias, ambas essenciais para a economia local e responsáveis por milhares de empregos. Destino turístico, Kandy guarda mais que as plantações: no seu templo principal dizem esconder-se um dente, relíquia de Buda que os portugueses, que tomaram a cidade por três vezes, afirmam ter destruído em Goa. Verdade ou não, vale a pena assistir ao rufar de tambores diário no Dalada Maligawa, entre dois passeios pelas colinas cobertas de floresta e plantações. Apesar de se ter dedicado ao chá apenas em finais do século XIX, depois de um fungo ter eliminado todo o seu café, o chá do Ceilão estabeleceu-se como um nome importante na indústria e o Sri Lanka como um dos maiores produtores mundiais.

Falta de Chá

A Camellia sinensis é uma planta arbustiva da família das teáceas que não pode ser cultivada em qualquer lugar: necessita de terrenos inclinados e bem irrigados, climas tropicais ou subtropicais, sendo o seu crescimento e qualidade favoravelmente influenciados pela conjugação de climas de monção com a altitude, que impede um crescimento demasiado rápido. Na Europa, os Açores são o único local onde se produz chá, o Gorreana: cerca de quarenta toneladas quase inteiramente consumidas entre Portugal e o Reino Unido.

À excepção de certas qualidades particulares, depois dos cinquenta anos as plantas são arrancadas e substituídas por outras novas, que começam a produzir cerca de quatro anos depois. Geralmente tomam o nome da região que as produz, sendo os nomes mais sonantes os do Ceilão (Sri Lanka), Assam e Darjeeling (Índia). Também diferem no tipo, que não vem da planta mas da forma de tratamento da folha após a colheita: os mais comuns são o chá verde, cujas folhas são imediatamente aquecidas até secarem e enrolarem, e o chá preto, cujas folhas são secas, pressionadas e deixadas a oxidar – daí a cor escura -, até produzirem o aroma desejado. As folhas mais inteiras dão o melhor chá; as mais partidas e o “pó” são de qualidade inferior, e acabam nos saquinhos de chá industrial vendido por todo o mundo. O chá branco, caro e raro, resulta de folhas muito jovens e protegidas da luz, colhidas durante um certo tempo da vida da planta; o chá de menta, tão popular no norte de África, é chá verde forte no qual se mergulham folhas de menta frescas (Nana); o chá de jasmim é perfumado com essas flores durante o processo de oxidação. Existem ainda os “chás de ervas”, que na verdade são infusões de outras plantas (cidreira, tília, camomila, etc.) e o chá-mate da Argentina e sul do Brasil, que é uma planta que substitui a do chá. Na Índia e no Médio Oriente é costume perfumá-lo com especiarias, sobretudo gengibre, canela, cardamomo ou noz-moscada.

Há quem diga que tem propriedades medicinais, é anti-cancerígeno e estimula o sistema imunitário; também se diz que tem fluoretos, que podem provocar osteoporose e artrites, cafeína, que perturba o descanso, e oxalatos, que provocam doenças renais. Seja quais forem as razões para o beber, medicinais ou sociais, e apesar de não poder ser cultivada na maior parte do planeta, a verdade é que esta é a camélia mais apreciada do mundo. Anualmente são produzidas cerca de três milhões de toneladas, metade das quais na China e na Índia, as restantes sobretudo no Sri Lanka, no Quénia, na Turquia e na Indonésia. Mas a produção continua a não chegar para a procura e, de um modo geral, a falta de chá continua a afectar a população mundial.

Publicado no magazine Fugas, do jornal Público


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