Xinjiang, na Rota da Seda

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A província de Xinjiang é uma espécie de oásis no noroeste da China, com as suas próprias etnias, geografia e cultura. A região foi durante séculos atravessada pelas caravanas que percorriam a Rota da Seda, e ainda hoje a mistura cultural é visível.

A Rota da Seda passa por Xinjiang

A província chinesa de Xinjiang fica na antiga Rota da Seda e funciona como um triplo oásis. Primeiro, porque representa uma ilha de etnias dentro da supremacia dos han; depois, porque as suas características geográficas são únicas na China. Finalmente, porque a vida se desenrola, sobretudo, em oásis tal como nós os conhecemos: lagos e rios rodeados de tufos de árvores, no meio de terra ressequida e desértica. Mas é preciso sair da capital, Urumchi, para nos iniciarmos neste território, tão inóspito como fascinante.

Da janela do comboio, é deserto até perder de vista. Os mapas localizam o deserto do Gobi para leste e o Taklamakan para sul – planícies de areia amarela, que alternam com colinas de cascalho negro. Ao fundo adivinha-se a silhueta da cordilheira nevada de Tian Shan. Urumchi fica entre uma coisa e outra, no fim da linha de comboio e da tira negra da estrada, permanentemente cheia de camiões com um rasto de pó amarelo atrás de si. A cidade é como tantas outras, com os mesmos prédios cinzentos ou revestidos a azulejos rosados, as mesmas ruas, largas demais para o trânsito. As mesquitas estão abertas, mas só cerca de 10% dos seus habitantes fazem parte do mundo islâmico. Com a construção da via férrea iniciou-se o desenvolvimento industrial e a deslocação de chineses han, que culminou com a sua supremacia numérica na capital e no norte da província; no total, os han já constituem mais de metade da população, sendo os restantes constituídos pelas onze minorias que habitam esta região autónoma.

O destaque vai para os uigures, que são mais de 40%, e que encontramos pela primeira vez no bazar: homens de aspeto mediterrânico e chapéuzinho quadrado, que assam espetadas e as servem em pães achatados, ao lado de balcões improvisados onde chineses sorvem as habituais sopas de massa. De vez em quando passam mulheres com vestidos a direito, de mangas compridas e um lenço a cobrir o cabelo; miragens de uma Turquia distante, que deixou língua e religião na Ásia Central. A sua fixação data do séc. XV, quando Tamerlão invadiu esta cobiçada área, na tentativa – já feita por tibetanos, hunos, chineses e mongóis – de controlar o comércio entre o Oriente e o Ocidente, a  famosa Rota da Seda. No caso de Xinjiang, será mais correcto falar em Rotas, uma vez que há dois caminhos, um que desce do norte e outro que atravessa o sul, juntando-se de novo em Kashgar, que é a verdadeira “capital” da província.

Por aqui passa a Estrada-da-Encosta-Sul-da-Montanha-Celeste, nome dado pelos chineses ao caminho do norte, que atravessa os contrafortes de Tian Shan e o impiedoso deserto de Taklamakan, conhecido pelo seu “mau génio”, constantemente manifestado em terríveis – e destrutivas – tempestades de areia. Mas para encontrar as maiores concentrações de minorias uigures ou nómadas cazaques e quirguizes, é preciso ficar em pequenas povoações, ou viajar nas encostas verdes das montanhas, onde a abundância de água garante o pasto a cavalos, ovelhas e cabras.

De Turpan ao lago Tianchi

Turpan, o “Oásis de Fogo”, fica a cento e oitenta quilómetros de Urumchi. Para lá chegar, são quatro horas e meia de calor e poeira, dentro de uma camioneta de uigures carregados de trouxas, que enrolam continuamente cigarros com papel de jornal. A estrada atravessa o vale do rio Baiyang, seguindo por um desfiladeiro de paredes altas, até um infindável mar de pedra solta: a bacia de Turpan, a segunda maior depressão do mundo a seguir ao Mar Morto. Associado à sua localização e altitude está também o facto de este ser o local mais quente da China, com temperaturas que chegam a rondar os 50º durante o Verão. Os oásis aparecem de repente, sem vegetação intermédia, mas quem aqui vive há muito que fez as adaptações necessárias ao seu conforto; há já 2.000 anos que a região floresce com a sua própria cultura e, no século IX, os uigures estabeleceram mesmo a sua capital em Gaochang (antiga Karachotcha), a quarenta e seis quilómetros de Turpan.

As habitações estão adaptadas ao excesso de calor e luz: baixas, com janelas pequenas e terraços. Pelas ruas correm regos de água ensombrados por latadas, e as entradas das casas e restaurantes têm sempre algumas cadeiras estratégicas, próximas deste bálsamo insubstituível. Nos arredores, alguns edifícios construídos com tijolos de adobe, empilhados em grade, servem para secar à sombra o produto que mais fama traz à província: as uvas. Custa a acreditar, mas é mesmo verdade: os frondosos ramos verdes que debruam o vale de Turpan, são videiras, com cachos de bagos compridos e magros, mas muito saborosos. Os pêssegos e os melões constituem outras tantas surpresas, e são especialmente famosos no oásis de Hami. E quem não acredita em milagres, palmilhando uns quilómetros pelas ruas de terra, desvenda o segredo: através de um sistema de irrigação constituído por mais de três mil quilómetros de canais subterrâneos, que descem das neves e lagos das montanhas de Tian Shan, a água é trazida para o deserto com abundância.

Aqui e ali, poços escavados em túnel são acessíveis por escadas, para consumo directo da população. São estes karez, ou canais, que sustentam toda a vida num local onde praticamente nunca chove e o ar é tão seco, que só um sistema subterrâneo poderia impedir as enormes perdas por evaporação, durante o longo percurso das montanhas ao deserto. Ao mesmo tempo, a grande diferença de altitudes – dos picos nevados a mais de 5.000 metros, aos 154 metros abaixo do nível do mar – dispensa o uso de processos de bombeamento.

Os chineses de Turpan convivem com o chamamento para a mesquita e com o pequeno comércio individual do bazar, onde as facas de cabo trabalhado, os tecidos de cores berrantes, os chapéus e lenços bordados, as especiarias de cheiros intensos, são as marcas mais populares e visíveis de uma cultura que se recusou a desaparecer.

A nível de arquitectura, sobrou o minarete Emin e a mesquita nua ao seu lado, construídos em 1776, no mais puro estilo afegão. A língua de origem turca, a religião muçulmana, a comida e a música sobreviveram aos anos piores, mesmo que à custa de uma “insularidade” forçada, nos oásis mais longínquos. De qualquer modo, os karez já existiam, e a sua importância ficou registada na história quando, após séculos de invasões, lutas pelo poder e declarações de independência, a cidade de Gaochang capitulou, por volta de 1300, por o seu sistema de canais estar completamente inutilizado. As suas ruínas, assim como as de Jiahoe, a dez quilómetros de Turpan, têm ainda uma força impressionante e parecem ser os restos da cidade mais ecológica de sempre: não se sabe se se trata de um monumento natural ou de algo levantado pelo homem, de tal maneira se confundem as formas e os materiais. Os montes podem ter sido casas, as paredes podem ser apenas falésias, as grutas podem ter sido arcos de triunfo, tudo feito em terra batida, uniforme na cor e desgastado pelo tempo. Alguns pátios ainda são usados para guardar animais e palha, mas a aldeia instalou-se agora do lado de fora das imponentes muralhas, que chegaram a ter doze metros de espessura e seis quilómetros de perímetro.

Outros locais históricos da zona incluem as grutas de Bezeklik, transformadas em mosteiros budistas, mas destruídas por muçulmanos e saqueadas por todos até ao princípio do século. Gaochang também foi um importante centro budista até se converter ao Islão, no século VIII. Nas proximidades fica o cemitério de Atsana, onde estão alguns sarcófagos pintados e as respectivas múmias, aqui depositadas sobretudo durante os séculos V e VI. As Montanhas Flamingo, assim chamadas pelos seus tons rosados, mudam constantemente de cor e de aspecto, de duna de areia a montanha de terra ressequida, sempre ofuscantes como brasas. Entra-se, depois, no fantástico desfiladeiro de Murtuq, com um palmo de água a ziguezaguear entre as dunas. Algumas carroças puxadas por burros servem de transporte entre os oásis, e surgem nas curvas do deserto, como se aparecessem do nada ou para lá fossem. Nuvens de calor enfumaçam o ar, fazendo vibrar e esvair-se em fumo os pontos mais longínquos do horizonte.

No bazar de Turpan é a hora de descanso, com os vendedores a desabarem de sono sobre as peças de tecidos, e grupos garridos de mulheres de lenço a jogarem às cartas. É preciso esperar pelo fim da tarde para que a povoação regresse à vida. O grosso dos negócios faz-se pela manhã, com os vendedores de melões a talharem solenemente fatias finas, e as mulheres mais velhas, saca no braço e uma dúzia de tranças a espreitar no fundo dos lenços, a mirarem com desconfiança os produtos. Depois de um mês de contactos fáceis com os chineses, estranha-se a falta de barulho e o ar sério dos uigures, que intensificam a sensação de estarmos noutro país. Um sapateiro chamado Memet – nome tipicamente turco – chamou-nos para conversar, dando palmadas num velho banco de madeira. Numa linguagem de mudos, ficámos a saber que, como minorias, não estão obrigados à lei do filho único; podem ter três e até há quem tenha mais. As frutas que produzem chegam a ser vendidas em Pequim, tal é a fama da sua qualidade, e o Vale das Vinhas recebe muitos turistas todos os anos, um sucesso que a todos orgulha. A conversa degenera em risota, quando os amigos de Memet resolvem apontar para a única chinesa que por ali estava, fazendo sinais com o polegar para baixo…

Seguindo o curso dos canais até à cordilheira de Tian Shan, não faltam paisagens como esta, pomposamente considerada a “Suiça chinesa”: picos nevados, florestas de coníferas, lagos recortados e uma frescura estimulante no ar. A apenas cem quilómetros de Urumchi e a 1.900 metros de altitude, alcançamos as margens do lago de Tianchi – o lago do Paraíso, como lhe chamam os milhares de turistas chineses que invadem as margens mais próximas da estrada. Apesar da proximidade do deserto, o clima é muito diferente, a começar pela elevada humidade, que favorece os excelentes pastos de erva fofa que cobrem as vertentes inclinadas das montanhas. Ao fundo, as neves do Bogda Shan, a 5.445 metros, são uma fonte permanente para os oásis de Turpan. As árvores parecem juntar-se sempre do lado mais quente, depois de uma prega protectora em relação à linha da neve. Esta é uma das áreas escolhidas pelos cazaques  para passarem o Verão com os seus animais, e o turismo já se juntou às tradicionais razões para o fazerem: a água e as pastagens. É fácil fazer dinheiro com os passeios a cavalo, ou alugando as iurtas a alguns estrangeiros, ansiosos por se afastarem do calor intenso do deserto. Ao mesmo tempo, já que o nomadismo está em regressão em todo o mundo, podem, pelo menos, ser nómadas uma vez por ano, de junho a setembro, altura em que regressam às suas aldeias.

Nas margens do lago Tianchi

Nas margens do Tianchi, longe do bulício de restaurantes e lojas improvisadas que esperam as camionetas de Urumchi, fica uma praia de calhaus brancos, encolhida ao lado de um penhasco. Só já muito próximo se consegue avistar os toldos claros de três iurtas; em frente, o verde baço do lago; dos lados, árvores espetadas nos flancos das montanhas, como velas num bolo de aniversário. Homens de boné azul escuro passam de manhã com os cavalos, e tornam a regressar ao fim da tarde, enquanto as mulheres cozinham em fogueiras improvisadas e cozem pão em fornos de terra batida. Alguns ficam “em casa”, consertando arreios e tocando as cabras e duas ou três vacas para mais longe. De aspeto reservado e roupas sóbrias, parecem pôr toda a vaidade e exuberância nos tapetes com que forram as iurtas e selam os cavalos, sempre de cores vivas e desenhos exóticos. Juntamente com os uigures, formam a maior comunidade étnica da província, unidos pela religião islâmica, embora com a sua própria cultura: uns, cavaleiros nómadas e pastores; outros com grande talento – e tradição – no comércio. Os primeiros, adaptando-se com arte aos locais adversos onde vivem; os segundos, perseguindo o lugar ideal para viver em cada época.

Ficando uns dias instalados numa iurta, apercebemo-nos de que os povos de tradição nómada também deveriam ser conhecidos pelas suas obras arquitectónicas. Nada mais adequado a nível de material e tamanho que uma desta tendas, tão facilmente desmontáveis, leves e de fácil transporte. À excepção da porta, geralmente pintada de forma atraente, e da estrutura, que é feita com varas de madeira, tudo é em lã de ovelha, incluindo as cordas entrançadas que prendem a cobertura ao esqueleto. Por dentro, a riqueza de cada um decide a quantidade de tapetes e almofadas, que cobrem o chão e as paredes. No centro do tecto, há sempre um pedaço de tecido amovível, que permite deixar sair o fumo quando se cozinha e tapar de novo, quando chove ou faz frio. Subindo as encostas, caminhando em direcção à neve, avista-se dezenas destas casinhas redondas espalhadas à volta do lago. Quase nunca ficam muito próximas umas das outras, escondidas no fundo das vertentes, entre árvores, mas sempre perto da água.

Ao fim de uns dias, entramos na rotina “doméstica”, ajudando a trazer água do lago ou a recolher ramos caídos para o fogão, a dormir quando o sol se põe, e a acordar com o ruído dos cascos dos cavalos resvalando nas pedras. Às vezes, alguém vinha dar um recado e trazer provisões, com uma cabrinha recém-nascida ou um neto pequeno atravessados na sela – nunca é demasiado cedo para andar a cavalo -, fazendo perguntas e apontando-nos com o queixo. Outras vezes era preciso enxotar algumas cabras, demasiado afetuosas, que não saíam da porta da iurta, ou da cozinha improvisada à sombra de uma árvore. E, tal como nos tinha acontecido em Turpan, a excepção do local e a possibilidade de privar com os habitantes destes oásis, foram adiando o desejo de regressar… à China.

Nota: Urumchi é a transcrição fonética portuguesa do nome da cidade. Os chineses usam a transcrição fonética inglesa, daí o nome aparecer como Urumqi em mapas ou em locais públicos (aeroportos e estações, por exemplo).


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