Teneré: as últimas caravanas de sal

Destinos

O Teneré é uma das mais belas zonas do deserto do Sara, e estende-se pelo Níger e pelo Chade. Nesta planície desértica encontramos dunas com mais de trezentos metros de altura, aldeias abandonadas num planalto de cabeços rochosos e um povo que deu nome à região, e que a habita há séculos: os tuaregues. Só eles perpetuam a tradição das azalai, caravanas de dromedários que atravessam o deserto levando tâmaras e outros bens cultivados nas aldeias do sul, para trocar por sal nas aldeias a norte do Teneré.

Pelo deserto do Teneré, a caminho de Djado

Há um mês no Níger e depois de um incursão de duas semanas no deserto do Teneré, não queria abandonar o país sem mergulhar mais uma vez naquela impressionante “terra do nada”. Desta vez queria alcançar o planalto do Djado e as suas aldeias abandonadas, seguindo a rota das cada vez mais raras caravanas de sal que ligam a mítica cidade de Agadez e as salinas mais a norte. Os fundos para alugar outra vez um jipe escasseavam, mas consegui encontrar alguém que prometeu integrar-me num pequeno grupo de turistas, caso eu quisesse arriscar alcançá-los de noite, coisa proibida e mesmo perigosa em território de salteadores e com escassos pontos de referência geográficos. Aceitei e partimos. O meu único erro foi anunciar que nem precisava de tenda, já que tinha dormido à luz das estrelas no anterior périplo pelo deserto; logo nessa noite começou uma tempestade de areia que havia de durar três dias e quase nos impediu de encontrar o grupo.

A areia escorria pelos vidros dos carros como água, os dentes rangiam, os olhos choravam pó – e todos os dias acordava transformada numa pequena duna, a cabeça encostada ao pneu de um dos jipes dispostos em círculo, supostamente para nos proteger. Ao fim de buscas e esperas, tive então a primeira demonstração de “GPS humano” que se iria repetir durante o resto da viagem: conduzindo através de uma nuvem amarela sem a mínima visibilidade, uma noite e meio-dia mais tarde o condutor levou-nos de encontro ao grupo, onde fui apresentada aos meus companheiros de veículo. Partimos então em direcção à famosa Árvore do Teneré, um poste de metal decorado que substitui a verdadeira última árvore, derrubada por um camião já há alguns anos, e que é uma espécie de entrada oficial no Teneré.

Na zona de sahel que antecede as dunas, o deserto estende-se como um espelho plano e baço por passam as caravanas de sal, cada vez mais raras, que transportam o ouro do deserto das salinas até às aldeias dos montes Air, e mesmo até Agadez, a “grande cidade”. Surgiram-nos por duas vezes, como uma miragem que irrompe do nada, no mais profundo silêncio: filas duplas de dromedários acompanhadas por um punhado de homens, grupos incansáveis e modestos que se contentam com pouca água e menos comida durante os trinta dias que pode demorar a travessia. Aqui, parar é morrer, e depois dos cumprimentos rituais todos desaparecem rápida e silenciosamente em direcção a um horizonte invisível.

Estabeleceu-se uma rotina diária que rodava em torno das refeições: de manhã acende-se o fogo, enquanto trocamos algumas palavras sobre o frio ou quem dormiu pior. Depois coloca-se a comida na traseira de um dos jipes: pão geralmente sequíssimo, compota, triângulos de queijo, bolachas, chá, café – um luxo. Sacudimos o melhor possível a areia da cabeça e das mãos, do colchão e do cobertor, passamos por pouca água a cara e as mãos. O resto do grupo vem chegando lentamente, desmontando as tendas e queixando-se igualmente do frio e do vento. As paragens repetem-se a meio do dia e antes do pôr-do-sol. Partilhei a massa de farinha e tâmaras que alimentava os tuaregues que conduziam e cozinhavam para nós – para além de muito esparguete, às vezes pão cozido ao sol, saladas de batata e fruta. A cada pausa havia sempre tempo para ficarmos a sós com uma imensidão de cores quentes: amarelo em Temet, onde as dunas mais altas do mundo chegam a ultrapassar os trezentos metros; laranja polvilhado de mármore branco em Illekane; rosa no céu e um branco cremoso nas dunas de Arakao, encostadas às montanhas de Air, que têm uma altitude próxima dos dois mil metros.

As terras de sal sucedem-se: depois de Fachi, Bilma; depois de Bilma, a povoação fronteiriça de Dirkou, onde centenas de africanos de toda a África Central esperam pacientemente por meios que lhes permitam avançar até à Líbia e, melhor ainda, até ao Mediterrâneo e à Europa. Ao longo da viagem encontrámos vários camiões cobertos de gente e mercadorias de contrabando. Passam dias, horas sem fim debaixo do sol e do vento, às mãos dos salteadores que por vezes levam tudo o que conseguiram juntar durante anos. Por fim chegamos a Seguedine, a última povoação antes do Djado. Todas têm em comum um punhado de casas feitas com tijolos de sal por populações geralmente toubous ou kanouris, que vivem de uma pobre produção de tâmaras e da venda ou troca dos tijolos esbranquiçados de sal que arrancam e moldam à mão dos charcos insalubres das salinas.

Dunas em Arakao

Por fim, o Djado

O jipe enterra-se uma e outra vez nas dunas baixas. A paisagem liberta permanentemente uma sensação de conforto e calor. Temos vontade de nos deitar no chão, mergulhar por inteiro na areia fina que nos massaja; de manhã o prazer não é o mesmo, a areia gelada morde-nos os pés mal nos levantamos. Deserto puro e extenso, o Teneré é uma surpresa depois dos vulcões negros e estéreis do Air, calcinados por milhares de anos de fogo agora extinto. Saímos de uma paisagem de pedra negra para dunas altíssimas, em Arakao e Temet, nos fazem esquecer que este já foi o habitat de elefantes e girafas; da vida selvagem sobra agora um punhado de avestruzes e outro de antílopes, alguns roedores, macacos e morcegos (avestruzes e antílopes addax estão praticamente extintos, assim como as chitas e as hienas), protegidos pelo santuário da Reserva Natural do Air e Teneré.

Mas em pequenos vales de rios erráticos, como Anakom, onde a água corre algumas horas por ano durante o milagre da chuva, pastores gravaram na pedra o testemunho desta terra que já foi fértil, em petroglifos infantis mas inequívocos, trepidantes de vida selvagem e abundantes rebanhos que ainda aqui apascentavam há cerca de quatro mil anos. E em aldeias como Timia, os tuaregues aproveitam o milagre da água e produzem milagres: laranjas, romãs e tâmaras. Aqui são semi-nómadas mas continuam a deslocar-se em dromedários, de pernas cruzadas como quem passeia de poltrona. Do corpo avista-se apenas as mãos, os pés e os olhos, que o resto está protegido do calor por camadas finas de roupa e um turbante de vários metros. As patas fofas dos dromedários garantem o silêncio, e a pose dos cavaleiros garante uma impressão forte, já relatada pelos primeiros exploradores europeus.

Finalmente, o planalto do Djado, que vejo agora que era apenas um pretexto para ir um pouco mais longe nesta magnífica zona do planeta: esculturas de vento e areia, arcos, torres, mesetas, gazelas fugidias que procuram água junto ao parco verde que existe. E sobretudo as aldeias abandonadas de Djaba e Djado, castelos de fadas ou miragens onde apenas sobrevivem algumas palmeiras. Ecológicas e miméticas, voltam agora a transformar-se em areia, mas numa apoteose de beleza que provavelmente nunca tiveram quando estavam de pé. Absolutamente fascinante, andar por entre os velhos muros silenciosos com a pergunta que não me sai da cabeça desde que entrei no Teneré: como é possível viver aqui? Que qualidades extraordinárias, que criatividade, que capacidades de resistência mental e física serão necessárias para viver uma vida no deserto? À beleza pura, junta-se uma admiração profunda.

Ao anoitecer o silêncio é de ouro – e também as dunas e o céu, fundidos no horizonte. Subimos resvalando pelas encostas íngremes e movediças, enterramo-nos até aos joelhos, tentamos equilibrar-nos em cumes finos como lâminas, de onde a areia escorre com um suave som metálico. Na zona de Adrar Bous, perto da fronteira argelina, a noite foi diferente: acampámos na cova de uma gigantesca duna e ao anoitecer aproximou-se um jipe com alguns homens, que montaram acampamento nas proximidades; imediatamente fogueiras e lanternas foram apagadas, as vozes silenciaram-se, condutores e ajudantes montaram guarda toda a noite. Mesmo os raros mini-autocarros que se fazem ao caminho para as terras de sal vão escoltados por veículos do exército fortemente armados, com metralhadoras montadas no tejadilho. O risco de ser atacado é real.

Depois do deserto e do vento, da presença subtil dos tuaregues, Agadez pareceu-me uma urbe turbulenta, com o seu tráfego de motoretas desafinadas e os mercados cheios de gente. E no entanto continua igual a si própria há centenas de anos: ruas de terra e casas de banco (tijolos de adobe secos ao sol), de onde se destaca apenas a torre piramidal da mesquita, que visitamos a troco de um donativo. Uma população composta sobretudo por tuaregues altaneiros, sempre com um pé no deserto e dispostos a abrir-nos as portas dele. Em viagens tão intensas para nós, e que para eles são simples quotidiano.

Adaptado de texto publicado na revista Blue Travel


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