Pelo deserto da Tunísia com Isabelle Eberhardt

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Visitar a Tunísia através das páginas dos Escritos no Deserto, de Isabelle Eberhardt, é mergulhar numa paisagem cultural que soube manter-se viva até hoje, mesmo debaixo da pressão contínua de um turismo rentável e apressado.

Douz-(5)

O deserto da Tunísia por Isabelle Eberhardt:

Isabelle Eberhardt percorreu o deserto da Tunísia, onde as nuvens ficam rosadas a anunciar chuva. Como se se esperasse a queda de pétalas de rosa, em vez da água que raramente abençoa os oásis, mesmo durante o inverno.

O movimento é intenso nos dias de mercado, as ruas ficam cheias de gente que se desloca a Douz, no sul da Tunísia, para comprar ou vender. “Rostos enérgicos e viris, faces bronzeadas, soberbamente emolduradas pela brancura de neve dos véus que descem dos turbantes, mulheres vestidas à antiga”, jovens de blusão e jeans, motoretas e carros, misturados com carroças puxadas por burricos recalcitrantes. E em volta o oásis e os seus jardins, “verdadeiros abismos, entre as dunas ondeantes, belos de uma beleza única, de um esplendor como eu não vira ainda”.

Apesar do turismo não ser já coisa recente e a população estar habituada a que os estrangeiros se confundam com as multidões que cruzam as ruas, é uma agradável surpresa verificar o amor da gente do deserto ao seu modo de vida, que permanece profundamente ligado à terra árida onde vivem, e ao pouco que dela podem tirar. A água quente que sai da terra fumega nos poços e arrefece pelos canais que irrigam os campos. Da areia sai o pasto para as cabras e ovelhas, para os burros e cavalos, para as centenas de dromedários da aldeia. “Não será a terra a fazer os homens?”, pergunta-se Isabelle, confrontada com esta simplicidade obstinada, como um reflexo das dunas lisas na alma das gentes. As adaptações à vida moderna têm vindo a fazer-se à medida das necessidades: os telemóveis dão sempre jeito, se o jipe tiver uma avaria; os mais modernos leitores de cassetes e CDs passam melopeias tradicionais, ondulantes e ritmadas, que todos cantam. Mas poucos passam sem as cachabias ou os albornozes de lã, tão confortáveis e quentes nos meses de Inverno. E os sapatos do Sara, com o seu bordado coquete na frente, ainda não saíram definitivamente dos pés dos locais para os dos turistas.

Claro que a vida se confina cada vez mais às cidades, e já são poucos os nómadas que não trocam, pelo menos sazonalmente, as suas tendas escuras por um casinhoto na aldeia mais próxima. As meharas de dromedários agora são feitas para os turistas, que os alugam para passear, em fila, pelo mar imenso de dunas brancas em que termina a Tunísia. Acabaram-se os tempos das grandes migrações e transportes de bens comerciáveis, até porque as fronteiras da Líbia e da Argélia, ali tão próximas, já não são tão permeáveis.

Isabelle, montada no seu cavalo Suf, ainda gozou do tempo em que se circulava de Marrocos à Tunísia pelo deserto, então dominado pela presença francesa. Vestida de beduíno, fazia-se passar por um jovem árabe em viagem, penetrando assim num mundo que estava vedado aos estrangeiros, e muito mais às mulheres.  “Se me vestisse com a correcção de uma jovem europeia, nunca teria visto nada e o mundo teria ficado fechado para mim, pois a vida exterior parece ter sido feita para o homem e não para a mulher. E no entanto gosto de mergulhar no banho da vida popular, de sentir as ondas da multidão passarem sobre mim, de me impregnar dos fluidos do povo. Só assim possuo uma cidade e dela sei o que o turista nunca compreenderá, apesar de todas as explicações dos seus guias.”

Isabelle Eberhardt nasceu em Genebra em 1877, e aos vinte anos foi viver com a mãe para o norte de África, na costa argelina e em Tunes, capital da Tunísia. Aprende, com o companheiro da mãe, vários idiomas, incluindo o árabe, que se tornará a sua segunda língua. A paixão pelo norte de África leva-a a percorrer território marroquino, argelino e tunisino vestida de cavaleiro árabe, acompanhando nómadas beduínos, escrevendo ao mesmo tempo o seu diário de viagens, assim como contos e novelas, muitas vezes oculta sob nomes árabes masculinos. O seu amor pelo deserto e o seu conhecimento do terreno e dos seus habitantes levam-na a viver de forma quase nómada durante os sete anos em que foi ficando pelo Magrebe. Em 1901, depois de ter sido expulsa pelas autoridades coloniais francesas, casa em Marselha com Slimène, um soldado argelino do exército francês, e adquire também a nacionalidade francesa. De regresso à Argélia, morre em 1904 em Ain Sefra, vítima de uma inundação que destrói a casa onde está. Tinha vinte e sete anos, sofria de sífilis, malária, e da incompreensão de uma sociedade colonialista que nunca aceitou que uma mulher europeia pudesse vestir-se e portar-se como um árabe, aderir a seitas islâmicas e tornar-se beduína de todo o coração.

Convertida ao islão em 1897, rezava, viajava e convivia em redor dos animados chás que sucedem às sestas, durante o pesado estio. Sem nenhum objectivo inicial preconcebido, sem quase saber porquê, esta atracção inexplicável pelos povos do deserto acabou por transformar Isabelle, jovem europeia no início de século vinte, numa verdadeira nómada, com a plena consciência dessa transformação. “Muitas vezes, nos caminhos da minha vida errante, me perguntei para onde estava ir e acabei por compreender, entre a gente do povo e os nómadas, que estava a subir até às nascentes da vida, a realizar uma viagem às profundezas da humanidade. Ao contrário de muitos psicólogos subtis, não descobri nenhum sentimento novo, mas recapitulei sensações intensas”(…)

Como todas as paisagens extremas, o deserto pode ser amado ou detestado por quem o conhece mais profundamente. No sul tunisino, uma experiência de longos dias através das dunas, por um silêncio que só é cortado pelo som macio das patas dos dromedários ou pelo vento que faz cantar a areia, pode ser o começo de uma paixão mais profunda, que nos faz ficar para sempre presos e saudosos dos infinitos horizontes dunares, difíceis de esquecer. E talvez nos faça sentir como Isabelle Eberhardt, no momento da partida: “E porque estou de regresso, porque talvez um grande exílio, longe do deserto amado, vá começar para mim, acho hoje a região banal, quase feia, eriçada de mil pontas a que nenhum raio de luz se prende.”

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