Na definição dos livros, a Provença situa-se no sul de França, entre o curso inferior do rio Ródano e os Alpes do Sul. Mas para o escritor Jean Giono, a Provença é um mundo composto por vários mundos diferentes, de gente pouco faladora mas hospitaleira que vive fechada em casa com um horror bem fundado ao sol, e que ama mais a sua terra, feita de extensos olivais, campos de trigo e lavanda, do que os homens.
As Cores da Provença
Levada pelo tempo e invadida pelo turismo, a Provença quase desapareceu, transformando as suas cidades pacatas em metrópoles atarefadas, e os seus pequenos portos de pescadores em praias da moda, pejadas de gente ao sol. Venceram os que apenas viam nesta terra um oásis de bom tempo, com tardes de sesta e jogos de pétanque ao som das cigarras. Mas ainda há lapsos nesta conquista. O segredo para os encontrar é trocar as horas – melhor ainda, as épocas; a primavera e o outono, o princípio da manhã e o fim da tarde, são as épocas favoritas para os descobridores nostálgicos da Provença.
No delta do Ródano fica a Camarga, que Jean Giono descreve como um “triângulo cheio de pássaros e de touros”. Com um indisfarçável cheiro a Espanha, aqui cultiva-se as cavalgadas por entre os canaviais e as salinas, manchadas de púrpura pelos flamingos. A “festa brava” são touradas pacíficas, em que o touro provavelmente se diverte tanto como as pessoas e, no fim de Maio, milhares de romani de todo o mundo chegam a Li Santi Mario de la Mar (Les Saintes Maries de la Mer), juntando-seà grande comunidade cigana da zona numa peregrinação ao túmulo de Santa Sara – inesperado, este é o primeiro retalho da Provença que encontramos, vindos dos Pirenéus.
Se continuarmos pela costa passamos por Marselha, cidade rusticamente latina, e acabamos na elegante Riviera-Côte d’Azur, em Nice, Cannes, Saint-Tropez, afastando-nos cada vez mais da Provença profunda. Já quase na fronteira italiana fica o mundano Mónaco e a sua antítese, os Alpes. Magníficos, participam na “glória da Provença e na nobreza das montanhas”. Mas não é em redor dos seus picos nevados que encontramos a esporádica sinalização em provençó, língua local que teve o apogeu na poesia trovadoresca, decaindo agora para nomes de restaurantes e outros serviços turísticos. Não é daqui o clima luminoso que se espalha pelas colinas cobertas de arbustos e vinhas, nem os campos de oliveira e alfazema, protegidos do mistral por áleas de ciprestes e choupos. Onde está a Provença antiga e perfumada, a dos saquinhos de ervas que se guardam na gaveta da roupa branca, dos montes de feno, dos campos de papoilas, lírios e girassóis, colados à tela pelas pinceladas fortes de Van Gogh? E as pequenas aldeias de pedra dispostas em flancos de montanha, de onde se descobre uma paisagem composta de “nove décimos de céu e um pequeno décimo de terra”, na descrição de Giono?
Em redor da sua terra natal, Manosque, e sem ter de ir mais longe que a Fontaine de Vaucluse, desenrola-se, como um tapete mágico, uma sucessão de paisagens, aldeias, lugares habitados e solitários, que preenchem o imaginário de quem leu a obra Provence. Entre o rio Durance e o monte Ventoux o turismo já se instalou, mas só o suficiente para cristalizar a arquitetura arcaica e tradicional, não deixando morrer as aldeias, trazendo um fôlego à pequena economia local do bistrot e do turismo de habitação. Há muito que a zona foi descoberta por cidadãos das civilizações sem sol, e grande parte dos belos casarios são agora propriedade de belgas, holandeses, ingleses e franceses vindos do norte. E se, para os primeiros, estas aldeias são refúgios para os rigores do Inverno na terra natal, para os franceses trata-se, muitas vezes, de mudanças de vida radicais. São muitos os que fogem das grandes cidades para aqui se instalarem com a sua arte: há joalheiros, ceramistas, pintores, pasteleiros e aprendizes de agricultor. Vindos dos vários cantos do “hexágono”, trazem consigo sementes de mudança. Ao lado de exposições artísticas nascem novas lojas com produtos locais, do pão de azeitona e ervas ao mel de rosmaninho, alfazema seca, vinho e pasta de azeitonas. Mais do que isso, as casas continuam a ser pardas ou rosadas, as portas e as janelas de madeira mantêm o azul ou o verde-água original; gerânios, buganvílias e roseiras de cores garridas, contrastam com as construções, pálidas de sol.
Em qualquer altura do ano, um ar quente chicoteia durante horas as árvores e os passantes; é o famoso “monstro” da Provença – o mistral. O horizonte desaparece em nuvens de poeira, os cheiros evaporam-se em minutos. Fica só o desconforto de andar de olhos semicerrados, o cómico das saias indiscretas, as toalhas voadoras das esplanadas, as corridas e as poses defensivas de quem passa. O mistral só pára quando consegue arrastar as nuvens negras até onde quer. As aldeias recortam-se num céu de chumbo, parecem iluminadas por velas. E chegam os relâmpagos, o granizo. O vento recomeça, rancos de árvores batem contra as janelas, rios lamacentos nascem nas ruas, como se fossem engolir as casas. Dez minutos mais tarde já tudo terminou e a paisagem reaparece, húmida e resplandecente: quilómetros de sobreiros, carvalhos, azinheiras, campos de trigo decorados por papoilas, cistos brancos e melados, manchas cheirosas de alfazema.
“No pino do verão domina o amarelo palha, no inverno o azul, na primavera o rosa; não há outono. É tudo.” Para além dos monumentos e lugares “inevitáveis”, pelo peso histórico ou pela beleza fora do comum, Giono ensina-nos a amar a subtileza amena da sua Provença, feita de perfumes fortes e cores suaves: “Desde o momento em que a vemos, quando temos gosto pelo silêncio e pela paz sabemos que aqui vamos encontrar repouso”. Só precisamos de uma casa parda com um relógio de sol na parede, e de sair ao fim da tarde para ouvir as cigarras e sentir os cheiros resinosos do mato, levemente temperados por uma maresia longínqua.
Jean Giono
Jean Giono nasceu em Manosque, França, em 1895, e aí morreu, em 1970. Trabalhou num banco, foi soldado durante a Iª Grande Guerra, e só se consagrou completamente à escrita aos trinta e cinco anos, depois do sucesso do seu primeiro romance, Colline. Excluindo umas breves passagens por Paris, e algumas curtas ausências no estrangeiro, Giono nunca se afastou da sua terra; as únicas “viagens” que se gabava de fazer eram passeios, geralmente a pé, em redor de Manosque, onde sempre viveu, e de outros locais arredados da Provença costeira. De origem modesta – o pai era sapateiro e a mãe empregada doméstica -, alcançou um reconhecido mérito literário nos anos 50, ao fazer parte da Academia Goncourt e, nos anos 60, ao entrar para o Conselho Literário do Mónaco. O seu interesse pela terra, a produção agrícola, a cultura muito própria do mundo rural em que vive e ao qual pertence, leva-o a militar contra as importantes alterações ambientais em avanço na Provença, como as grandes vias de acesso em projeto, ou a construção de uma central nuclear nas proximidades de Manosque.
Giono escreveu dezenas de romances, ensaios, poemas, crónicas, peças de teatro. Entre os mais conhecidos conta-se Le Bonheur Fou, Les Âmes Fortes, Le Moulin de Pologne, Manosque-des-Plateaux e Provence, todos publicados pelas edições Gallimard (França). Provence é uma recolha de textos por ordem cronológica, escritos para revistas, brochuras de exposições e de turismo, curtas-metragens, guias de viagem, entrevistas radiofónicas, etc. A “sua” Provença, a cuja transformação assistiu ao longo da vida, foi sempre o motor da sua obra, quer como tema de ensaios quer como cenário de romances. E são essas transformações, que resultaram na Provença actual, que acompanhamos a par e passo ao ler o que escreveu. A sua casa em Manosque pode ser visitada no Boulevard Elémir Bourger, nº 1, e a Fundação Jean Giono em Le Parais (Manosque), situa-se na Montée des Vrais Richesses.
Adaptado de texto publicado no magazine Fugas, do jornal Público