Franz Kafka nunca escreveu sobre a sua cidade, a não ser em diários ou cartas, mas o lugar onde sempre viveu estava-lhe no sangue e no imaginário. E sobrepondo-se à discussão sobre se Kafka foi um autor alemão, checo ou judeu, aparece sempre, de forma indiscutível, o grandioso cenário da sua vida: a belíssima cidade de Praga.
Kafka: Praga não nos deixa escapar…
“Praga não nos deixa fugir. A nenhum de nós. Esta mãezinha tem garras. Temos de nos portar bem, senão… Temos de deitar fogo em dois lugares, em Vysehrad e no castelo, e então talvez sejamos capazes de escapar.”, escreveu Kafka a Oskar Pollak. É verdade que Praga não nos deixa fugir: mesmo muito tempo depois de deixarmos a cidade para trás, a imagem pontiaguda da colina onde se destaca o castelo e os recortes negros das estátuas da Ponte de Karl no céu azul continuam na nossa memória. Sem esforço, conseguimos rever certas ruelas estreitas, filas de casas pintadas de cores suaves, detalhes a ouro, as igrejas escuras e barrocas… É tal a exuberância arquitectónica que a parte mais antiga da capital checa se imprime na memória como um todo, um conjunto monumental sem interrupções que se estende dos dois lados do rio Vltava.
Praga não sofreu muito, em termos de devastação, quando comparada com os países vizinhos que estiveram no centro do conflito, como a Alemanha, a Áustria e a Polónia. Mas o número de habitantes judeus da cidade tinha descido de cento e dezoito mil para trinta e oito mil, depois da Segunda Grande Guerra. Kafka viveu apenas o primeiro conflito mundial, e escapou a envergar a farda do kaiser apenas por a sua presença ter sido considerada indispensável na empresa de seguros onde trabalhava como jurista. Mesmo durante os precários anos de 1914 a 18, o escritor continuou a sua actividade literária, e as escadarias e corredores labirínticos do edifício da Assicurazione Generali, onde lutou para se adaptar a um emprego “normal”, parecem ter passado directamente para as páginas de O Processo. “Escrever”, dizia ele, “é a minha luta pela auto-preservação”. Apesar de nunca ter atingido – nem em sonhos – a fama mundial que hoje tem, só durante os últimos anos de vida é que a doença o foi obrigando a abandonar a escrita, a leitura e a participação em sessões públicas de leitura e debate nos salões intelectuais da época, como o de Berta Fanta, na Praça da Cidade Antiga e nos cafés Louvre e Savoy.
Embora tenha vivido sempre nesta cidade, excepção feita a algumas viagens ou estadias em sanatórios, Praga só aparece referenciada directamente nos seus diários pessoais, nunca no que considerava como a sua obra literária. Franz Kafka e Praga, obra de Harald Salfellner, ajuda-nos a encontrar todos aqueles locais – e muitos outros – que fizeram nascer no imaginário de Kafka os pesados cenários dos seus romances; o ambiente, esse foi captado sobretudo pelo fotógrafo Ivan Korecek, que nos mostra uma Praga fantasmagórica e nocturna, de ruas labirínticas e atmosfera carregada de mistério. Mas ao visitar hoje a cidade à procura do autor, encontramos apenas os lugares onde viveu ou que frequentou. Praga aparenta agora ser uma capital moderna, de cara lavada para turista ver: os monumentos estão recuperados e abertos ao público com entrada paga, os bairros pintados de fresco, os ofuscantes detalhes dourados de Arte Nova a rebrilhar ao sol. Kafka deu nome a restaurantes e cafés, e mesmo a uma praça, e o seu rosto de criança subalimentada ajuda agora a vender vários artigos e promove a cidade que, entretanto, se transformou completamente.
Praga antiga
De tal maneira o escritor faz parte da cidade que é impossível não repetir os seus passos ao visitar a parte antiga de Praga, desde a zona do antigo ghetto judeu e das sinagogas até à Praça da Cidade Antiga. De facto, e muito convenientemente para os turistas de hoje, a maior parte das casas onde viveu encontram-se situadas nesta praça ou nas suas proximidades; a belíssima casa U Minuto, na esquina sobre as arcadas, sobre um café com o mesmo nome, é a mais especial de todas devido à sua fachada coberta de pinturas a negro. A casa onde nasceu já não existe, mas há uma outra, construída no mesmo lugar e onde está aberta uma exposição permanente sobre a sua vida; do Palácio Kinský, onde frequentou a escola secundária, basta atravessar a praça para chegamos ao salão de Berta Fanta. Como se não bastasse, Kafka também viveu na outra zona mais turística da cidade, a do castelo, a que se acede atravessando a não menos famosa Ponte de Karl: um apartamento na rua Nerudova, e uma pequena casa na Viela Dourada. Um pouco mais acima destacam-se as torres pontiagudas da Catedral de S. Vitus, cujas proporções são “como se constituíssem o limite máximo que o ser humano pudesse suportar”. Todos estes lugares estão agora completamente invadidos por turistas, que chegam atraídos pela fama de uma das mais belas cidades da Europa. Há filas para entrar nas igrejas e nos museus, magotes de gente em frente a cada estátua, grupos sentados na Praça da Cidade Antiga, esplanadas cheias de alemães ao longo do rio, japoneses que fazem a sua caricatura na Ponte de Karl, franceses que se revezam para tocar com a mão numa estátua da ponte, que de negra já passa a dourada, de tanta carícia. A Praga sombria e nostálgica, quase mística, que deu à luz um escritor como Kafka, já não existe; fosse o escritor vivo e é mais que certo que produziria outro tipo de obras, certamente mais luminosas e mundanas.
Franz Kafka
Nasceu em 1883, na cidade de Praga, que era na altura a terceira maior cidade do império austro-húngaro dos Habsburgos. Foi o primeiro filho de uma família de seis, e o terceiro a morrer; as três irmãs que lhe sobreviveram acabaram por não resistir aos campos nazis, para onde foram levadas durante a Segunda Guerra Mundial. Os pais, comerciantes judeus, conseguiram dar aos filhos o nível de vida que não tiveram, e o pai, Hermann Kafka, usava e abusava do tema como chantagem psicológica sobre o único filho varão vivo, facto que sempre revoltou o jovem Franz. Dada a impossibilidade de dedicar completamente a vida à escrita, Kafka tirou o curso de Direito e trabalhou em empresas de seguros em Praga, reservando todo o tempo que podia às suas obras. A solidão era-lhe indispensável, e os seus noivados terminavam sempre num confronto com a incapacidade que sentia em dedicar-se à família, a partilhar de forma permanentemente o seu tempo e o seu espaço com outros. Minado por uma tuberculose que resistiu a todos tratamentos que fez, acabou por morrer num sanatório austríaco em 1924, com apenas quarenta e um anos de idade.
A maior parte da sua obra salvou-se graças ao seu amigo Max Brod, que não lhe fez a vontade; na verdade, Kafka teria preferido que os seus escritos fossem destruídos após a sua morte. Socorrendo-se muitas vezes da solidão noturna, o escritor chegava a escrever horas a fio, entregando-se com às palavras como um náufrago à deriva, numa vida que não lhe interessava minimamente. O absurdo, a inquietação e a negra angústia que encontramos nos seus romances parecem ter sido retiradas directamente do seu dia-a-dia, no qual faltou emoção e felicidade. De facto, tão bem nos transmite os lados mais sombrios da existência humana que o vocábulo “kafkiano” se popularizou, como um sinónimo de incompreensível ou labiríntico, algo contra o qual lutamos e que não tem fim à vista.
Na época, pouco da sua obra foi publicado: algumas histórias soltas, uma colectânea de textos chamada Meditação e A Metamorfose , que passaram quase despercebidas. A fama e o reconhecimento internacional só chegaram postumamente, primeiro nos anos 20 e 30, com a publicação das suas três grandes obras inacabadas, O Processo, O Castelo e América, mas sobretudo nos anos 60.
Adaptado de texto publicado no magazine Fugas, do jornal Público