Líbia: Ghadamès revisitada

Lugares Improváveis

Ghadamès é uma cidade-oásis que pertence à Líbia, na confluência das fronteiras com a Argélia e a Tunísia. Neste momento é o exemplo perfeito dos lugares fantásticos fora do alcance dos visitantes, por causa de guerras e instabilidades políticas que nos ameaçam a todos – sobretudo quem lá vive.

 Ghadamès, Líbia

Como a minha vida é um rosário de viagens, acontece-me de vez em quando “perder” lugares por causa de guerras, distúrbios locais ou cataclismos. Um deles foi a Líbia, país onde vivi pela primeira vez entre tuaregues e onde o deserto esconde uma boa parte da história de África.

Ghadamès é uma cidade-oásis berbere que fica na confluência das fronteiras da Argélia e da Tunísia. Até ao séc. XVII, foi um importante entreposto para as caravanas que atravessavam o deserto do Sara, e sofreu consideravelmente com a abertura de portos na costa ocidental de África. No século XVIII as caravanas de camelos ainda traziam escravos, ouro, couro, plumas de avestruz e marfim, para trocar por cavalos, açúcar e produtos europeus, como contas de vidro e colares de Veneza, brilhantes de Paris, papel e tecidos como seda. Mas no século XIX, com o fim da escravatura, terminou o comércio mais lucrativo.

A fabulosa cidade antiga, testemunho visível da história, faz parte da lista de locais protegidos pela UNESCO, que ainda não a colocou na lista de locais em risco.

Quando estive em Ghadamès podia passear livremente pelo oásis onde fica a parte antiga, abandonada pelos habitantes desde 1986, trocada por casas de cimento, feias e sem carácter mas onde é possível instalar água corrente e esgotos – ao contrário das construções em adobe. Alguns “guias” locais tinham chaves que permitiam aos visitantes mais curiosos terem uma visão sobre o seu extraordinário interior. E lembro-me de pensar que qualquer aprendiz de arquiteto devia vir aqui, estudar esta fantástica cidade-fantasma de um austero estilo Le Corbusier adaptado ao deserto.

Ghadamès é de uma beleza e funcionalidade indescritíveis. Inserida num palmeiral sombrio, parece um bloco único, uma fortaleza sem entradas. Tinha sete portas, e uma vez lá dentro ainda temos a impressão de percorrer uma termiteira humana, com furinhos a servir de janelas, muros e paredes de tijolos de adobe cobertos de argila e pintados de branco, ruelas escuras cheias de ângulos em cotovelo que ligam a outras ruas ou terminam em pracetas e portas de casas – algumas, decoradas com bocadinhos de tecido pregados por tachas, denunciam o dono como um hajj, alguém que já fez a peregrinação a Meca.

Dentro das suas muralhas coabitavam duas tribos berberes, os ben Oualid e os ben Ouazit, enquanto cá fora vivia uma terceira tribo e os nómadas tuaregues, sempre de passagem e por vezes contratados para proteger as caravanas dos ataques dos… tuaregues, ou de tribos árabes. Cada bairro tinha a sua praça, a sua escola corânica, a sua Grande Mesquita – a dois passos uma da outra e com um pátio comum para as duas. Ainda há marcas na parede a marcar a “fronteira” entre as tribos.

A vida tinha uma organização social muito própria e extremamente estratificada. Avós e pais decidiam quem casava com quem; os homens saíam de dia e as mulheres saíam antes do nascer do dia, ou depois do pôr-do-sol. A casa era o domínio das mulheres, que circulavam pela cidade através dos terraços e muretes que uniam as construções, todas com primeiro andar e terraço com cozinha.

O reino das mulheres era o mais fabuloso. Entrava-se nas casas por um compartimento simples no rés-do-chão e subia-se uma escada para chegar ao lar. Antes de casarem, os futuros maridos entregavam a chave de casa às suas noivas, para que elas a decorassem a seu gosto. Com tinta vermelha, as mulheres desenhavam sobre as paredes brancas quadrados de cor à volta das portas, em redor dos espelhos que refletem a luz das clarabóias, no contorno dos degraus. Há pequenas palmeiras infantis, xadrez e quadrados, detalhes em verde e amarelo. A sala é o centro da casa, onde a decoração é mais carregada, o chão coberto de tapetes e almofadas, as paredes pintadas e cobertas de objetos de latão dourado e de “chapéus” de folha de palmeira que servem para tapar os pratos com comida.

Há sempre um quarto pequeno, enfeitado com cortinas, que imita uma tenda, onde os noivos dormem na primeira noite e onde se fará o velório do marido. As restantes divisões são polivalentes, com exceção da cozinha. Um pormenor curioso é o espelhinho nas escadas que descem do terraço, que servia para a dona de casa não aparecer despenteada, ou com a cara negra de fumo. Há pequenos nichos nas paredes, para as especiarias, outros maiores para cântaros de água ou lâmpadas de azeite. O estilo é único, um barroco do deserto que nunca vi em qualquer outro lugar.

Cá fora, as esquinas dos terraços levantam-se em pirâmides aguçadas, para que os djins (os génios maus) não consigam aterrar nas casas. Nas praças e ruas – a maior parte são túneis, arcadas ou vielas estreitas onde o sol tem dificuldade em entrar -, as paredes já têm assentos para os homens ficarem ali na conversa – e esta é a única parte da cidade que ainda hoje é usada pelos mais velhos, que aqui se encontram aos fins de semana para gozar a brisa fresca e conversar com os amigos.

Todos dançavam nas festas, os homens nas praças, as mulheres nas casas. Mas sempre separados por sexo e por idades: homens dançam com homens, rapazes com rapazes e idosos com idosos – e o mesmo com as mulheres. Mas claro que isto faz parte do passado; agora as mulheres andam nas ruas da cidade nova, com os seus mantos às riscas coloridas e fios de prata, e ocupam empregos no funcionalismo público e em bancos.

Em 2011, durante a guerra civil, forças do Conselho de Transição entraram na cidade. Sem os poucos turistas que já começavam a chegar e os fundos para ir reparando uma arquitetura que é sempre uma obra em curso, o que será agora de Ghadamès? Uma cidade cada vez mais fantasma? Quanto tempo demorará o deserto a recuperar território, apagando o rasto de uma extraordinária obra de arquitetura?


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Anabela Tomás Agosto 27, 2014 às 15:31

A guerra já destruíu demasiados oásis… Este é uma descoberta para os meus olhos, ainda preservado dos olhares destrutivos dos homens, semeado de encantos e recantos, que eu pensei impossível de encontrar numa terra fustigada como a Líbia. Que assim fique por largos anos!

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Comedores de Paisagem Agosto 28, 2014 às 19:24

Que assim seja, Anabela! 🙂

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Filipe Morato Gomes Setembro 15, 2014 às 16:21

Olá Ana, sabes que já tive o privilégo de andar por estas paragens – e não sei porque razão vim parar a este texto hoje. Talvez para matar saudades! Como será que Ghadamès está por estes dias? Um beijo.

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Comedores de Paisagem Setembro 15, 2014 às 21:19

É isso mesmo Filipe. O que será feito de um lugar tão especial?
Vamos voltar um dia?

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