O Parque Nacional Ankarafantsika, em Madagáscar, é dos mais acessíveis do país. Para além disso tem grutas onde dizem que há crocodilos, uma floresta densa cheia de fauna insólita, e um desfiladeiro colorido digno de Marte. E quando o guia faz parte das curiosidades, a visita ainda se torna mais interessante.
Rafael de Ankarafantsika
Rafael é guia no Parque Nacional de Ankarafantsika, em Madagáscar, mas a sua paixão é a música. Estava na sua hora de começar a trabalhar, depois de três dias em casa com malária, chegava eu de uma atribulada viagem de Diego Suarez.
Como é costume nos Parques Nacionais de Madagáscar, depois de pago o bilhete é-nos atribuído um guia e podemos optar por um dos itinerários que os parques propõem, mais longo ou mais curto, de acordo com o tempo disponível. Eu tinha apenas um dia, e depois das apresentações pedi a Rafael para simplesmente me levar pelos seus trilhos favoritos. Disse-lhe que esta seria a minha última incursão na fabulosa floresta de Madagáscar, o último encontro com as suas plantas únicas e lémures curiosos, antes de regressar a Portugal. Rafael olhou-me nos olhos e disse solenemente:
– Quero que vás embora contente; vamos juntar dois circuitos para veres os lémures e muitas coisas mais…
Eu sabia que ele não me estava a prometer répteis venenosos, que não existem na ilha; talvez as lagartas brancas que tinha visto em Anja, que parecem flores felpudas, ou o camaleão mais pequeno do mundo, com apenas alguns centímetros de comprimento.
Começámos por entrar na floresta, uma fantástica combinação de plantas que formam uma cortina verde cerrada, durante a época das chuvas, mas que durante o inverno se despem quase completamente, exibindo um entrosado impressionante de raízes voadoras e lianas.
– É importante não fazer barulho – sussurrou-me.
Uns a seguir aos outros, seis tipos de lémures desfilaram, incluindo uns ruivos, muito tímidos, que passaram a fugir, e dois seres minúsculos, de olhos grandes como pires, com um ar ensonado e escondidos num buraco de uma árvore.
Saindo do trilho de vez em quando, fui ainda conhecendo as plantas mais comuns da farmacopeia tradicional, incluindo a que trata os acessos de malária.
– Devia ter tomado o chá quatro vezes por dia mas só tomei três, por isso demorou mais a passar… – confessou o Rafael com um sorriso.
Na sombra, junto a um carreiro, umas flores de um branco fosforescente refletiam a luz do sol.
– De noite metem medo.
– Mas quem vem aqui de noite?
– De vez em quando é preciso vir, porque há caçadores furtivos que vêm caçar lémures, e temos de os proteger.
E aí surgiu a ponte para a sua paixão: a música. Membro de uma igreja luterana onde toca órgão, Rafael lançou-se na composição de várias músicas sobre a natureza e a ecologia, com a ajuda de algumas meninas do coro da igreja.
– É preciso proteger o planeta – temos de o deixar intacto para os nossos filhos! Este é o refrão da minha última música.
– Então e como é a música? – atrevi-me a perguntar. E pronto. O resto da caminhada foi todo muito musical. Primeiro, tive direito à música que pedi. O Rafael cantor parou, marcou o compasso com palmas e pediu-me para o acompanhar no refrão. Balançámos os dois, acompanhando o ritmo, e cantei com ele o refrão, que até entrava no ouvido: la-la-la- sauvez la plaaaaa-nè-te. E depois tive direito ao resto do reportório.
– E também tenho esta: la-la-la! – continuava ele, a marcar o compasso com a mãos nas pernas enquanto caminhávamos.
Felizmente já tínhamos deixado a floresta – e o risco de assustar a bicharada toda – e estávamos numa área de savana que antecedia um fabuloso desfiladeiro, escondido sob os nossos pés até estarmos mesmo em cima dele. Desci por um carreiro íngreme e encontrei-me no meio de paredes coloridas e formações estranhas, torres e “arranha-céus” vermelhos e amarelos que lembram cidadezinhas extraterrestres.
Rafael cantarolava à sombra, fornecendo a banda sonora, enquanto eu me perdia por ali, à descoberta de novas formas e cores. Nada mexia, numa paisagem esmagada pelo calor e pela humidade. Comemos a fruta e bolachas que eu levava, e quase esgotámos a água antes de retomar a marcha.
– Já só falta encontrar as sifakas – anunciou. E entrámos de novo na floresta.
Mas desta vez foi em vão. Não por causa da veia musical do guia, que desistiu de me converter em fã quando queria repetir comigo o seu último êxito e eu já não me lembrava do refrão; os bichos é que deviam estar mesmo a descansar à sombra, e quem é que os podia recriminar? Nós devíamos estar a fazer o mesmo, mas o lugar era demasiado tentador. O Rafael músico voltou ao seu papel de guia dedicado, explicando-me detalhes sobre o uso medicinal de dezenas de plantas, apontando uma tartaruga, desencantado camaleões e flores belíssimas, apontando pássaros que cantavam escondidos. Só faltavam mesmo as sifakas, uns lémures brancos com um ar espantado e inocente que já tinha avistado noutros parques. Geralmente são eles que nos vêm espreitar, mirando-nos do alto das árvores com a mesma curiosidade e surpresa que nós. Mas a visita acabou com um Rafael desanimado a apontar uma árvore gigantesca, mesmo à saída:
– Elas costumam vir aqui dormir, mas hoje não estão cá…
Sosseguei o guia-cantor e disse-lhe que ia ficar na entrada do parque à espera de transporte – quem sabe se elas não vinham despedir-se de mim ao cair da noite? Mas o Rafael sentia-se em falta pelo que eu não tinha visto, e decidiu ficar por ali.
– Mas não tens a família à tua espera? Não precisas de ficar aqui comigo…
Nem me respondeu. Cantarolava, levantava-se e desaparecia na floresta. Voltava a cantarolar baixinho e punha-se a andar à volta da árvore, mirando os ramos mais altos com muita atenção. Quase uma hora depois, vejo finalmente um grande sorriso na sua cara. Em silêncio, fez-me sinal para me aproximar e apontou-me uma zona da copa: lá estavam elas! Literalmente sentadas de perna cruzada, mastigando as últimas folhas e preparando-se para o descanso. Com o crepúsculo iam chegando cada vez mais, em silêncio, distribuindo-se pelos ramos. Que beleza!
Finalmente o Rafael despediu-se, satisfeito:
– Ficaste contente?
Muitíssimo. E ali estive até cair a noite e chegar o miniautocarro para o meu próximo destino. Eu e as sifakas, a apreciar-nos mutuamente. E foi nessa altura que o refrão da música me voltou à cabeça – tarde demais para cantar com o Rafael.