Durou vinte e quatro anos, este périplo inicialmente destinado a organizar uma rota comercial e a levar uma mensagem do Papa ao imperador mongol. Empurrado ou cercado por guerras e conflitos políticos inesperados, Marco Polo acabou por percorrer grande parte da Ásia num fabuloso percurso, hoje impossível de realizar.
O Périplo de Marco Polo
Entre 1271 e 1295, os Polo – Marco, o pai Nicolo e o tio Maffeo – ausentam-se de Veneza em direcção ao Oriente e ao império de Kublai Khan, que lhes teria pedido uma representação do Papa, oferecendo-lhes, ao mesmo tempo, boas perspetivas de comércio no seu extenso território. Depois de paragens em Jerusalém e S. João de Acre, o itinerário preciso dos três homens é muito difícil de assegurar, mas basta um olhar sobre o mapa para ver que atravessaram toda a Ásia até à capital de Kublai, Cambaluc (Pequim).
Se fosse possível retomar os seus passos, o que encontraríamos hoje nos locais visitados? Que tradições se perderam e que etnias se sumiram na complexa história deste continente? As dúvidas só poderiam ser esclarecidas caso tudo o que se conta fosse verdade, mas desde sempre que a questão da veracidade se levantou. Destas páginas saem, por exemplo, algumas das primeiras referências, por vezes exageradas, a animais estranhos para um europeu mas que de facto existem. Veja-se o caso do iaque das montanhas de Altai, “comparável, pelo seu tamanho, a elefantes. (…) O pêlo, que é corredio em todas partes do corpo, eriça-se-lhe no lombo, onde tem uma altura de três palmos”; ou dos crocodilos, “grandes serpentes, de dez pés de comprimento e o corpo com dez palmos de circunferência (…). Na parte dianteira, próximo da cabeça, tem duas pernas curtas, com três garras como as do tigre e olhos maiores do que volumosos pães e muito brilhantes. As mandíbulas são tão amplas, que pode deslizar um homem por elas (…)”. Mas como acreditar nos espantosos “cinocéfalos”, que viviam nas ilhas agora indianas de Andaman, e que, num corpo de homem “têm todos uma cabeça de cão, e como os dos cães são os dentes e os olhos”?
Muitas foram as “maravilhas” testemunhadas por Marco Polo que se encontram ainda espalhadas pelo planeta, e muitas as outras que nasceram após a sua passagem. No rol das belezas naturais inclui-se o bíblico monte Ararate, que já foi na Arménia e hoje é na Turquia, “uma grande e alta montanha sobre a qual repousou, segundo se diz, a Arca de Noé”. No seu sopé, “de tal maneira extenso que são precisos dois dias para dar a volta completa”, distribuem-se agora minúsculas e hospitaleiras aldeias curdas que vivem da pastorícia, de onde é difícil sair sem ceder a um convite para um chá ou um copo de água bem gelada. As neves invernais dão lugar a um calor tórrido no verão. Os turistas vêm até este extremo da Turquia, junto à fronteira com o Irão, sobretudo para verem o suposto lugar onde encalhou a Arca e o fantástico castelo de fadas de Isak Pacha, em Dogubeyazit, verdadeira sentinela do Ararate. Os curdos já não são “tribos sem princípios, cuja ocupação consiste em assaltar e roubar os mercadores”, e a curta estrada que leva à fronteira com o Irão faz-se sem perigos. Do outro lado, as mulheres curdas continuam a alegrar a rude paisagem de montanhas nuas com os seus vestidos garridos. Tabriz é a grande cidade mais próxima e foi um grande entreposto da Rota da Seda, mas todo o território persa foi sempre indispensável em termos de comércio; Marco Polo fala dos seus cavalos, dos tecidos de ouro de Yazd e da importância que já ganhou o porto de Ormuz: ”(…) numa ilha situada à distância, mas não muita, da margem, se levanta a cidade de Ormuz, cujo porto é frequentado por comerciantes de todas as partes da Índia, que trazem especiarias e drogas, pedras preciosas, pérolas, tecidos de ouro, dentes de elefantes e outras diversas espécies de mercadorias.” A velha fortaleza construída pelos portugueses três séculos mais tarde é agora uma relíquia, visitada pelos raros turistas que se aventuram em terras dos ayatollahs e no calor sufocante do Golfo Pérsico.
Este porto foi apenas um dos que Marco Polo conheceu na sua viagem de regresso por via marítima. Sobre a costa da Cochinchina, por exemplo, diz Rusticelo que “Marco Polo visitou esta região em 1285, e nessa época o rei Zamba tinha trezentos e vinte e seis filhos, entre varões e mulheres. (…) A região abunda em elefantes. Há muitos bosques de ébano de uma esplêndida cor negra, madeira de que se fabricam formosos artigos de mobiliário”. De uma beleza exuberante, o Vietname ainda é mais conhecido por uma longa e injusta guerra do que pelas suas praias de mar turquesa debruadas por uma floresta tropical – embora os elefantes já não abundem e as plantações de borracha tenham substituído o ébano. Ali ao lado, em Myanmar (antiga Birmânia), o Grande Khan aprendeu o valor dos elefantes na guerra e Marco admira os monumentos fúnebres locais, que nada mais podem ser que as belíssimas stupas budistas actuais, “torres piramidais de mármore, com dez pés de altura, um volume proporcional e coroadas, cada uma delas, com uma esfera. Uma das torres foi coberta com uma placa de ouro de cerca de cinco centímetros de espessura, de forma que apenas o ouro era visível; e a outra com uma placa de prata da mesma espessura. Em redor das esferas suspenderam pequenas bolas de ouro e de prata, que tilintavam quando o vento as sacudia. O conjunto formava um quadro esplêndido.” Um passeio pela planície de Bagan, por onde se espalham milhares destes pequenos templos, à hora em que a luz do crepúsculo os pinta de dourado, e compreendemos que o Grande Khan os tenha poupado depois de ter conquistado a capital, Mein.
A costa do Malabar (Índia), com os seus famosos pescadores de pérolas e toda a riqueza deste imenso subcontinente, parece ter tomado bastante tempo da sua viagem, uma vez que, para além da China, não há outro território que lhe tenha merecido tanta atenção e em que demonstre tanto conhecimento, mesmo algum fascínio, na descrição dos nativos e dos seus costumes. No norte, nas montanhas do Caxemira “Os nativos têm a cútis fusca, mas não são negros (…). Há também florestas, tractos desérticos e gargantas de travessia difícil nas montanhas, que de certo modo protegem os íncolas contra as invasões.” E por todo o território, Marco Polo regista a prática do sati (suicídio ritual das mulheres após a morte do marido), os hábitos alimentares e de higiene, os trajos e mesmo alguns detalhes religiosos próprios dos hindus, como a incineração dos cadáveres e o respeito pela vaca: “(…) nenhum se deixará induzir, por nada no mundo, a comer a carne do bovino.(…) Pedem aos sarracenos, que não sofrem a influência dos mesmos preconceitos e costumes, que lhes abatam os animais cuja carne desejam comer (…)”. Se muitos dos costumes se mantêm, alguns dos mais belos monumentos do país, como o Taj Mahal, foram construídos bem mais tarde pela dinastia mogul, descendentes dos imperadores mongóis, que reinou sobre grande parte da Índia durante os séculos XVI e XVII. E no país da “grande abundância de pimenta, gengibre, canela e nozes da Índia (cocos)”, os últimos tigres escondem-se agora em Parques e Reservas vigiadas.
“Samarcanda é uma nobre cidade, adornada com formosos jardins e circundada por uma planície onde se criam todos os frutos que o homem possa desejar“. O seu nome é dos mais evocativos das caravanas da Rota da Seda – que, aliás, é ainda é uma das grandes produções do Uzebequistão –, mas são os campos de algodão de que Polo nos fala que rodeiam a cidade. As belíssimas mesquitas e madrassas que decoram as praças de Registan em Bukhara e em Samarcanda, tão justamente protegidas pela UNESCO, essas foram levantadas da areia pelos russos antes da independência, e já tinham sido arrasadas por Gengiscão ao tempo da passagem de Marco Polo.
Para chegar à China e à corte de Kublai, o último território a atravessar foi o Turquestão, ou Grande Turquia, região de pastores nómadas e montanhas, a que se seguem os desertos do Taklamakan e do Gobi. Toda esta área da Ásia Central está povoada por etnias de origem turca, descendentes das sucessivas hordas de Tamerlão que ocuparam a zona por várias vezes. Em Samarcanda predominam os tajiques, em Kashgar os uigures: ”(…) Kashgar, segundo se diz, formou outrora um reino independente, encontrando-se agora submetido ao domínio do Grão-Kan (…). O povo fala um dialecto próprio. Vive do comércio e da indústria, especialmente da que se ocupa da fiação de algodão. Existem ali formosos jardins, hortas e vinhedos.” Hoje a cidade faz parte da China, mas continua a ser, provavelmente, dos lugares com mais carácter do país. Os habitantes são muçulmanos, continuam a falar a sua língua de origem turca e a fazer o milagre de produzir algodão no deserto, para além de excelentes frutas, como melões e uvas. O mercado de sexta-feira é, certamente, um sobrevivente dos séculos, onde uma multidão de locais e semi-nómadas vestidos a rigor continua a vender e a comprar camelos, cavalos, mulas, carneiros e cabras.
Depois, “(…)a viagem decorre invariavelmente sobre planícies arenosas ou montanhas estéreis; porém, ao fim de cada dia de marcha, o viajante pode deter-se em algum lugar onde encontre água (…). Em três ou quatro destes lugares de descanso, a água é salgada e amarga(…)”. O deserto de Taklamakan, para Sul, e o de Gobi, para norte, esperavam as caravanas, assim como os salteadores, a sede e a insolação. Agora há uma moderna linha de comboio que liga Kashgar a Urumqi e daí a Dunhuang, na orla do deserto, Xian, o início da Rota da Seda, ou mesmo a Pequim, numa travessia de todo o território que demorava cerca de cinco meses na época do nosso viajante, e que agora se faz em cerca de três dias. E é só ver o deserto mudar de cor, das dunas rosadas ao chão de calhaus queimados, até entrarmos na fértil região da China central. A norte fica (agora) a Mongólia, a vasta estepe de vieram os sucessivos khans e as suas hordas, encaixada na Sibéria, onde “Durante a maior parte dos meses de inverno, o Sol conserva-se invisível e a atmosfera apresenta-se tão crepuscular como entre nós o nascer do dia, quando podem dizer que vemos e que não vemos.” Marco Polo conta que “A província ou região da Rússia, de vasta extensão, está dividida em muitas partes e confina com a região setentrional que descrevemos como a Região da Obscuridade. Os seus habitantes são cristãos e nas suas cerimónias seguem o ritual grego.“ Diz-se que mãe de Gengiscão era oriunda de uma aldeia nas margens do lago Baikal, e Polo já fala na abundância de raposas, martas e zibelinas, e num “veículo próprio para viajar sobre a superfície gelada do solo”, “a que lá chamam trenó”.
Um dos últimos territórios a passar para mãos chinesas, também este anteriormente sob a alçada mongol, foi o “desolado país de Thebet”, o Tibete, “anteriormente um país de tanta importância que dava para ser dividido, como dantes esteve, em oito reinos, que continham muitas povoações e castelos. São numerosos os seus rios lagos e montanhas”. Curiosamente, Polo não nos dá conta das suas imensidões geladas e de algumas das mais belas montanhas dos Himalaias, apenas conta alguns costumes mais raros dos seus habitantes, de índole “longe de ser óptima”, e avisa sobre a abundância de animais selvagens. Tão esparsamente populado como na época e com grandes limitações a nível de vias de comunicação, esta continua a ser uma das áreas do planeta menos conhecida e explorada, mesmo depois da abertura ao turismo pelas autoridades chinesas.
A construção das diversas muralhas defensivas contra os mongóis, conhecidas como Grande Muralha, foi iniciada no século III A.C. e acabou por não ter o efeito desejado. Os mongóis dominaram a China e estabeleceram mesmo a capital em Cambaluc ou Khanbalik, a “cidade do Khan”, hoje chamada Pequim. O seu magnífico palácio já não existe, mas os complexos da Cidade Proibida e do Palácio de Verão, construídos durante as dinastias Ming e Qing, não desmerecem todas as descrições elogiosas feitas pelo viajante. Aliás, parecem não ter sido muito diferentes, com a sua enorme área muralhada e interdita ao povo, englobando vários palacetes faustosos, lagos e jardins. Foi aqui que Marco Polo passou a maior parte dos anos, apreciando a riqueza e a organização de uma corte e de um império que, em muitos aspectos, seria muito mais desenvolvido do que a Europa da época: já existia o “papel-moeda”, feito com carimbos, a imprensa era conhecida desde o século VII, e o sistema de malapostas – ou não fossem os mongóis grandes cavaleiros – permitem a muda de cavalos e o envio de correio por todo o império com eficácia e rapidez.
As outras cidades de que nos fala parecem ecoar ainda hoje nas ruas mais antigas de Pequim. Os mercados de Kin-Sai (Hang-Cheu), por exemplo, tinham uma afluência de milhares de pessoas, uma multidão igual à de qualquer mercado chinês nos dias de hoje. A quantidade e diversidade de animais e de “frutas e ervas comestíveis”, o vinho de arroz “perfumado de especiarias”, as lojas onde “se transaciona toda a espécie de mercadorias e se vende toda a casta de artigos, nomeadamente especiarias, drogas, jóias e pérolas” continuam a existir; faltam apenas as pequenas (in)utilidades que a China exporta, e a população já não anda “na sua maioria (…) vestidos de seda”. “Existem muitos templos dedicados aos ídolos, com os seus mosteiros ocupados por certo número de monges”, já que, depois das tropelias da história a religião voltou a ter um lugar, ainda que moderado, na China moderna.
É curioso verificar que esta incursão num território quase desconhecido parece não ter tido grande finalidade; os Polo voltaram com alguma riqueza, é certo, mas ganharam-na durante vinte e quatro anos. E se a história desta viagem nunca dantes feita veio à luz em forma de livro, a coisa deu-se quase por acaso, só porque um escritor de Pizza foi encarcerado com Marco, um dos seus protagonistas, e isto já alguns anos após o seu regresso. Por acidente ou não, o que é certo é que esta é uma daquelas aventuras que já não se pode repetir no mundo atual. Mas é mesmo isso que dá sabor às descobertas e coincidências que encontramos nas suas páginas, ao viajar pela Ásia com o Livro de Marco Polo no bolso.
Quem era Marco Polo?
No século XIII, Veneza era a cidade das especiarias, sedas e pedras preciosas, transportadas do Oriente por caravanas; os portugueses ainda não tinham arrasado as rotas comerciais terrestres com o estabelecimento das suas rotas marítimas até à Índia e ao Extremo-Oriente. Os Polo eram uma família de mercadores venezianos, com sucursais em Constantinopla e na Crimeia. Os irmãos Maffeo e Nicolo Polo possuíam mesmo a sua própria frota de galeras mercantes e também tinham interesses no comércio com a Rússia, Mar Negro, Tartária, e nas caravanas que percorriam os desertos da Mesopotâmia.
Em 1253 Nicolo casa-se com uma nobre veneziana, e seis meses mais tarde parte com o irmão numa expedição comercial, internando-se na Tartária com uma caravana de ricas mercadorias. Quando conseguem regressar, em 1269, Nicolo encontra um filho de quinze anos, Marco, e descobre que a esposa já tinha morrido. Claro que a próxima expedição, poucos anos depois, inclui Marco no rol da caravana. Os Polo tinham estabelecido excelentes relações com o Kublai Khan, que até os tinha nomeado seus embaixadores junto do Papa. Depois de anos de viagem evitando guerras e locais hostis, conseguem finalmente chegar à corte e Marco aparece encarregado de várias missões pelo khan; era muito comum os mongóis contratarem estrangeiros para supervisionarem os funcionários chineses, e o jovem veneziano conhecia “várias línguas e quatro escritas e letras”, talvez o persa, o mongol, provavelmente também o turco e o árabe, as mais úteis para as actividades político-comerciais na Ásia. Nas boas graças do khan, chega a ser governador de Yangzhu durante três anos.
Apesar do khan não os querer deixar partir, os três aventureiros conseguem aproveitar uma das missões – entregar uma noiva a um súbdito do Imperador mongol -, para regressar a casa. Marco, Nicolo e Maffeo chegam a Veneza em 1295, vinte e quatro anos depois da partida, quando a família já os tinha dado como mortos e feito as partilhas. Foi preciso um grande banquete com familiares e amigos e uma excelente performance teatral, com Marco a distribuir presentes e a tirar da bainha da roupa pérolas e pedras preciosas orientais, para que, enfim, todos acreditassem que eles tinham voltado vivos.
Em 1296, os Polo fretaram uma galera de guerra para ajudar Veneza numa guerra contra Génova. Marco, que a comandava, foi feito prisioneiro e encerrado numa cela com um cavaleiro e homem de letras, Rusticelo. É este que escreve o seu Livro das Maravilhas, a Descrição do Mundo ditada por Marco onde finalmente nos dá a conhecer parte das suas aventuras de vinte e quatro anos. Curiosamente, como aponta Jacques Heers, nada nos diz da sua actividade de mercador, não fala de negócios ou de qualquer acção comercial.
Libertado em 1299, é recebido com pompa e honrarias em Veneza. Casa-se tardiamente, tem três filhas, e morre aos setenta anos de idade, em 1324.
Para saber mais, deve ler pelo menos O Livro de Marco Polo, e também Marco Polo e a Rota da Seda, de Jean-Pierre Drege, outro livro muito interessante sobre esta e outras viagens na Ásia.