Marguerite Duras: Indochina, meu amor

Viagens com Livros

Dois dos romances de Marguerite Duras, que têm como palco a Indochina francesa da época colonial, enlaçam de forma admirável a atmosfera social decadente, a apatia que faz ruir projectos, a paixão dos amantes e o ”inferno do calor imóvel, monumental”. Os cenários são a trepidante cidade de Saigão, no Vietname, e a plácida “planície fabulosa e sedosa do delta” do Mekong. Para ler antes de partir.

A Indochina de Duras

Em finais do século XIX a França “criou” o território da Indochina, impondo-se definitivamente como potência colonizadora dos territórios da Cochinchina, no delta do rio Mekong – e unindo-os com o porto chinês de Chizouwan, com o Laos, o Camboja, Tonquim e a zona montanhosa de Anam, formando assim a União Indochinesa.

De todos estes territórios, o Vietname foi sempre o país que mais resistência ofereceu. Mas por azar, esta era  justamente a parte da Indochina que os franceses menos queriam perder, pela sua importante produção de antracite, tungsténio, borracha, chá, zinco e ópio. Depois dos franceses chegaram os americanos, que fizeram proliferar os hotéis, restaurantes, cafés, e também a prostituição, o tráfico de quase tudo e a criminalidade.

O calor e a humidade sempre marcaram as paisagens do Vietname. Rios foscos serpenteiam por um verde intenso; à selva luxuriante sucedem-se os pântanos e os arrozais em socalcos, por onde se passeiam guardadores de patos e búfalos cavalgados por crianças. Neste “país indeciso” as paixões têm o calor e a lassidão do clima. O país continua a ser um formigueiro de chapéus cónicos num patchwork de campos verdes, salpicados de coqueiros e pessoas, apenas pacificados pelo calor da tarde, que tudo imobiliza. Solidão é uma palavra quase impossível de imaginar. Este é o palco de Uma Barragem contra o Pacífico e o Amante da China do Norte, duas obras que nos remetem para um Vietname em vias de extinção.

Saigão e o Delta do Mekong

Saigão é a parte mais ocidentalizada de uma cidade com perto de quatro milhões de habitantes, a gigantesca metrópole de Ho Chi Minh, que abrange também Cholón, a zona de influência chinesa. Ficam em Saigão os boulevards arborizados e os edifícios da era colonial francesa, cenário de charme dos romances de Duras, perfumados pelo cheiro forte dos jasmins – “enjoativo, dizem alguns brancos no início da sua estadia. Para depois sentirem a sua falta  logo que partem da colónia.” As influências francesas são invisíveis ao primeiro impacto, frente à profusão de roupas e chapéus típicos, à estranha língua escrita em alfabeto latino nos enormes cartazes políticos. O francês só é falado pela geração dos avós, sobretudo algumas velhinhas gentis que rondam os templos e monumentos imperiais, que ainda tratam os estrangeiros por “madame” e “monsieur”; os mais jovens adoptaram o inglês, mais adequado aos negócios com turistas.

O trânsito é muito intenso, com grande profusão de motorizadas e bicicletas furando com dificuldade por entre a multidão que cobre as ruas, sobretudo ao fim da tarde. Às vezes parece-nos assistir à fuga precipitada de milhares de refugiados, tal a confusão de gente que passa com cestos e fardos às costas. Aos poucos, vamos descobrindo pérolas um tanto deslocadas neste ambiente profundamente asiático, como o elegante edifício dos correios, em estilo clássico, junto à catedral de Notre-Dame, numa praça ajardinada onde os cyclo-pousse (riquexós a pedal) esperam os clientes, dormitando sobre os selins.

A atmosfera é agitada, comercial, há milhares de lojinhas minúsculas e pequenos negócios de rua. Aqui e ali aposta-se em jogos de cartas e combates de galos. Entre os restaurantes vietnamitas, com o seu tofu, caranguejos e legumes com molho de peixe, é possível encontrar cafés com croissants – e é impossível não encontrar as carrocinhas que vendem sanduíches de baguette e queijo La Vache Qui Ri, pelo menos tão populares como as sopas de massa. Rapazes oferecem-se como guias, outros fabricam carrinhos e helicópteros de brincar com latas de refrigerantes, para vender aos turistas. Só nos templos e nos seus arredores arborizados é que se respira um pouco de paz e silêncio

Para além das motos-táxi, há velhas camionetas que substituem os eléctricos da época colonial, mas que são igualmente sobrecarregadas: “Sobre os tejadilhos há mulheres com bebés consolados, sobre os estribos, as correntes de protecção das portas, há cestos de vime cheios de aves, de frutos. Os eléctricos já não têm forma de eléctricos, estão inchados, amolgados até não se parecerem com nada de conhecido.” E os assentos são minúsculos, para caberem ainda mais passageiros. Mas chegam a todo o lado, da longínqua capital, Hánoi, a Camau, “a extremidade final do continente Ásia. Desta palavra, Ásia.”

Aqui termina o extenso delta cujas cidades principais, Mytho e Cantho, vivem do rio Mekong, que fertiliza os arrozais e traz peixe em abundância. Nas margens, casas lacustres abanam à passagem dos barcos, riquexós chegam com gigantescos blocos de gelo, que servem para conservar o peixe. Os mercados são uma galeria de costumes vietnamitas com pinceladas francesas: no meio das jacas e dos patos, do tofu e dos diversos tipos de arroz, aparecem bacias com rãs, morangos e “bomes” (maçãs, do francês pomme), e as inevitáveis baguettes. De vez em quando passa uma mulher de cesto pendurado no braço, cheio de frasquinhos com verniz das unhas de cores diferentes, que vai oferecendo os seus serviços às vendedoras mais coquettes.

A população deste país que nasceu do mar já ultrapassou os setenta e um milhões de almas; tem uma das densidades populacionais mais altas do mundo, e a quantidade visível de crianças parece garantir, pelo menos, a permanência dos números: aparecem “por todo o lado, a sonhar encarrapitadas nas árvores, nas barragens, nos búfalos, ou a pescar acocoradas na borda dos esteiros, ou espojadas no lodo a apanhar caranguejos-anões dos arrozais. E também no rio, a chapinhar, a brincar ou a nadar.” Curiosos e pouco tímidos, os pequenos vietnamitas gostam de interpelar os estrangeiros e, se possível, de lhes puxar os pelos dos braços ou das pernas, e fazer cócegas no queixo. Nas horas vagas, claro, que o mais normal é vê-los de uniforme a caminho da escola ou trabalhando nos campos, conduzindo os búfalos a casa e manobrando bandos de patos pelos arrozais fora, com a ajuda de uma vara comprida. Todos participam nesta obstinada “barragem contra o Pacífico”, lutando contra uma natureza ingrata, feita de chuva e sol excessivos, e frequentemente, durante a sua longa história como país, pelo próprio território. É este combate que lemos nos livros de Duras, assim como as histórias de amores contrariados de uma juventude prisioneira da época, nesta “Flandres tropical quase libertada do mar”.

Marguerite Duras e a sua obra

Marguerite Donnadieu nasceu na Indochina francesa, em 1914, de pais professores. Após a morte do pai, quando a escritora tinha apenas quatro anos, a mãe é levada por agentes locais a investir tudo o que tem num terreno improdutivo, o que a leva a endividar-se e a fazer da sua vida uma luta contra a corrupção do sistema colonial. Esta revolta permanente marca Marguerite, que fica num internato em Saigão enquanto a mãe e o irmão permanecem na sua propriedade, na zona do delta. Uma Barragem contra o Pacífico relata a sua luta perdida, ao mesmo tempo que nos revela detalhes sobre a dura vida da população vietnamita. Aos dezoito anos, Marguerite regressa a França, adere ao Partido Comunista, luta contra a guerra na Argélia e participa no Maio de 68. Muda o nome para Duras, na altura da publicação de um dos seus primeiros romances, e mantém-se uma escritora socialmente activa e muito prolífica até à sua morte, em 1996.

Em Portugal, a autora conta com uma boa dúzia de livros publicados. Entre eles, alguns tiveram honras de adaptação ao cinema, como Hiroxima, Meu Amor e Uma Barragem contra o Pacífico. O Amante da China do Norte é também uma adaptação cinematográfica de O Amante, que conta os amores impossíveis de uma jovem francesa (Marguerite?) e do seu amante chinês. A grande constante da sua obra é, obviamente, a colónia francesa da Indochina, o relacionamento entre os colonos poderosos e os mais pobres, entre os franceses e as populações locais. A atmosfera da época mistura revolta, apatia, e o difícil convívio entre colonizadores e colonizados que condena ao fracasso qualquer história de amor.


Pub


Quando viajo faço sempre um seguro de viagem pela Nomads


Anabela Tomás Maio 7, 2013 às 22:21

Sempre Muito Bom, é a tua nota de texto e imagem. Nota-se que estou em fase de correção de trabalhos?

Responder

Comedores de Paisagem Maio 8, 2013 às 17:38

Nota-se um bocadinho, prof!
Obrigada pela nota!

Responder

Fernando Oliveira Maio 8, 2013 às 11:24

Olá! Texto magnífico e boas fotos, que me “levam ” até esses sítios. Parabéns!

Responder

Comedores de Paisagem Maio 8, 2013 às 17:39

Obrigada Fernando! Fico muito contente, até porque não deve haver muito quem leia estes textos maiores até ao fim…

Responder

António Junho 5, 2013 às 15:24

Olá!
Também ando a ver viagens para o Vietname. Será que me podes aconselhar sobre esta em particular? Parece-me ser bastante completa mas também está muito barata e acho estranho…
http://thewanderlust.pt/Vietname.pdf
E conheces esta empresa?
https://www.facebook.com/TheWanderlust.travels

Responder

Comedores de Paisagem Junho 5, 2013 às 20:45

António, a verdade é que as minhas viagens são SEMPRE feitas de modo independente. A única reserva que faço é a dos voos de ida e volta (e às vezes mudo as datas de regresso 🙂 Quando preciso de organizar pequenas expedições, como no Tibete ou no Teneré, recorro a agências locais, que contacto já no país, falo diretamente com as pessoas e escolho a agência in loco. Isto para dizer que não conheço agências nenhumas, nem posso recomendar…

Responder

Deixe o seu comentário!