Sabores Longínquos – Pequena história das especiarias

Receitas

Os romanos chamaram-lhes species. Associadas a climas quentes, tropicais, paragens exóticas e longínquas, a verdade é que algumas das especiarias mais conhecidas, como a mostarda, o funcho e o açafrão, são de origem europeia. Mas delimitemos primeiro, por razões de espaço, o que se considera especiaria, deixando de lado as ervas verdes consumidas frescas e condimentos como o açúcar, que durante muito tempo foram raros, caros, e usados com parcimónia. Fiquemo-nos pelas plantas, sementes, frutos, raízes e cascas que, secas ou frescas, reduzidas a pó ou a pedaços, utilizamos para modificar o sabor dos alimentos – e muitas delas também para fins medicinais e cosméticos.

Vendedor de especiarias e frutos secos em Amber, Índia

No princípio era a pimenta…

«Quando os mongóis e os turcos interromperam o suprimento por terra dos condimentos do Oriente, a era dos descobrimentos começou. A Europa descobriu que não podia viver sem tempero e lançou-se ao mar e à conquista de rotas alternativas para o cominho e, por acidente, outros mundos (…) Toda a grande aventura imperial foi aromática, tangida pela pimenta e o gengibre, a hortelã e a noz-moscada. Homens rudes lançavam-se contra o desconhecido e a morte pelo rosmaninho. Navios inteiros eram tragados pelo mar e deixavam, na superfície, irônicas sopas de ervas. Até a poluição era inocente: se se rompesse um porão de navio, as praias se cobriam de grãos de mostarda, as gaivotas se intoxicavam com favos de baunilha. (…)

Luís Fernando Veríssimo, A mesa voadora (2001)

A história das especiarias na Europa ficará para sempre ligada à história do mundo, como responsável por novas rotas terrestres e marítimas, o desenvolvimento do contacto com o Oriente e até pela descoberta da América – quando o que se procurava era um caminho mais curto para o Oriente, de onde provinham estes produtos exóticos. Os portugueses, com as suas viagens marítimas intercontinentais, popularizaram na Europa o que na Ásia – o continente onde existe maior variedade e maior consumo de especiarias – já era de uso comum. Chineses e árabes usavam-nas abundantemente e comercializavam-nas, gregos e romanos escreveram exaustivamente sobre o seu uso, e quando os Visigodos cercaram Roma, em 408, um dos resgates exigido foi 3000 libras de pimenta. Os cruzados chegaram à Palestina no século XII, reacendendo o comércio e, na Renascença, os grãos de pimenta, valiosíssimos, chegaram a ser usados como pagamento, em vez de dinheiro.

No séc. XIII, Marco Polo já tinha tentado encontrar uma rota alternativa às dos comerciantes árabes, que controlavam o seu comércio, mas foi o Infante D. Henrique que conseguiu por os portugueses na rota da Índia, popularizando as especiarias na Europa. Na mesma época, Colombo chegou à América e regressou com pimenta-da-jamaica, pimentões picantes e baunilha: estavam definitivamente abertas todas as rotas de acesso a estes condimentos que mudaram para sempre a cozinha mundial.

Medicina e Cosmética

Chineses, egípcios, romanos e gregos já faziam referência a certas especiarias curativas em caso de doença. Vejamos alguns exemplos: o gengibre é antipirético, excelente para gripes e constipações; o pimentão tem boas propriedades anti-bacterianas; o açafrão ajuda as mulheres nas dores menstruais; a noz-moscada estimula as funções intestinais e a canela é um bom anti-séptico. Tudo depende das doses e da duração do tratamento e, se é certo que muito deste conhecimento se perdeu, em favor dos químicos mais potentes e que apresentam resultados imediatos, a verdade é que ainda sobrevivem alguns remédios caseiros do tempo em que se podia aviar “receitas” na nossa mercearia. Por exemplo, apertar junto a um dente dorido uma cabeça de cravinho, comer um piripiri de manhã, em jejum, para acabar com as hemorróidas, tomar um chá de anis para a tosse e expectoração, ou aplicar um emplastro de mostarda e água quente para aliviar as dores reumáticas.

Na cosmética são geralmente usados os óleos essenciais retirados das plantas e posteriormente transformados. Apreciados geralmente pelo seu odor, estes óleos são obtidos através da destilação e largamente utilizados na confecção de perfumes e na aromaterapia, que promove o equilíbrio e a harmonia do corpo através dos odores.

Especiarias Exóticas

No caso das especiarias exóticas – considerando como tal as mais raras e, por isso mesmo, mais caras e menos usadas – deve haver especial cuidado na sua armazenação; em casa, devem ser guardadas ao abrigo da luz e do calor. Se tiver oportunidade de as comprar inteiras (gengibre em raiz, pimenta em grão) e moer ou cortar na hora de utilizar, adicionará uma frescura extra aos pratos.

Hoje em dia já é possível encontrar em grandes supermercados, alinhadas ao lado dos cominhos, do colorau e da pimenta, especialidades menos tradicionais na cozinha mediterrânica/atlântica. Alguns exemplos disso são o cardamomo (a especiaria mais cara logo a seguir ao açafrão), delicioso em estufados ou adicionado ao café ou ao chá (basta esmagar ligeiramente um grão), o gengibre, raiz muito utilizada em toda a culinária oriental, a curcuma, ou açafrão da Índia, colorante adocicado para molhos, que provém de uma raiz da família do gengibre e que é especialmente utilizada em molhos ou no arroz, ou o anis estrelado, excelente sobretudo em licores e compotas (de abóbora, por exemplo).

Açafrão, açafroa

Uma vez que o açafrão é a especiaria mais cara do mundo – trata-se dos estames da flor do crocus sativus, e para produzir um quilo são necessárias cerca de cem mil flores – a sua falsificação foi e continua a ser frequente, sobretudo nos mercados de rua asiáticos. Na verdade, existe uma variedade de planta, a carthamus tinctorius, à venda no mercado nacional com o nome de açafroa ou cártamo, que é utilizada para dar a cor amarela do açafrão à comida, mas que de modo nenhum lhe empresta o mesmo sabor. O aspecto é muito parecido, diferenciando-se apenas pela coloração alaranjada, enquanto o açafrão é mais avermelhado. As suas pétalas são usadas há séculos pelos monges budistas para tingir as suas roupas monásticas – e o arroz-doce também fica com uma cor muito agradável mas, uma vez mais, o sabor é quase nulo. Em caso de dúvida, não compre em pó: prefira os filamentos, mais fáceis de distinguir. Podem ser mergulhados numa pequena porção de água quente que depois é coada e adicionada ao prato em confecção – e basta uma pequeníssima dose para que o seu sabor levemente amargo transforme a refeição.

Publicado no magazine Fugas, do jornal Público


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natasha Outubro 9, 2015 às 15:29

adorei eu tenho 13 anos e estou fasendo uma pesquisa sobre as especiarias com meu professor de historia

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Comedores de Paisagem Outubro 13, 2015 às 1:57

Bom trabalho, Natasha! Gostava de ver o resultado final dessa pesquisa! 🙂

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Gustavo BIXO Ñ C-I OπNAR Março 22, 2016 às 13:00

Gostei muito do post, sou aluno de Ciências dos Alimentos na ESALQ/USP e estou fazendo um trabalho sobre plantas medicinais, aromáticas e condimentares pra faculdade, seu post ajudou muito, obrigado!

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Comedores de Paisagem Abril 12, 2016 às 17:15

Obrigada, Gustavo! Fico contente… 🙂

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SINDERLEY DESTRO Abril 19, 2016 às 22:04

Sensacional o assunto tanto em beleza como em conhecimento.
Grato.
Sinderley Destro.

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Comedores de Paisagem Maio 25, 2016 às 14:46

Muito obrigada, Sinderley!

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