Diz a lenda que Adão aterrou no Sri Lanka quando foi expulso do Paraíso, e deixou uma pegada onde é hoje o Pico de Adão. Numa madrugada chuvosa, seguimos os passos do pai mítico e vencemos os degraus que levam ao cume do Adam’s Peak, a peregrinação mais importante do país para cristãos, muçulmanos, budistas e hindus.
Adam’s Peak – nos passos de Adão
Adam’s Peak ou o Pico de Adão fica no coração do Sri Lanka, em todos os sentidos da palavra: está situado no centro da zona montanhosa onde se cultiva o chá, é um importante lugar de peregrinação para as principais religiões da ilha e é também um marco histórico, conhecido como local de peregrinação há mais de mil anos, tendo até os reis Nissankamalla e Parakramabahu dotado o caminho dos peregrinos com locais de repouso.
Adam’s Peak, Sri Pada (pegada sagrada) ou simplesmente Samanalakande (o monte onde as borboletas vão morrer), são os nomes mais conhecidos do local onde uma marca em forma de pegada, mesmo no alto de um monte, se transformou, para cristãos e islâmicos, no sítio exato onde Adão poisou o pé quando foi expulso do paraíso. Para os budistas, esta é a pegada de Buda ao deixar o mundo, depois de atingir a iluminação; para os hindus, é a marca do deus Xiva. Seja qual for a crença, de dezembro a abril os peregrinos chegam aos milhares, e a multidão é tanta que a subida dos 5.200 degraus até ao cimo do monte chega a demorar onze horas.
Para os não religiosos como eu, o monte não deixa de ser muito especial: o pico rochoso eleva-se em forma de pirâmide a 2.224 metros de altitude, de uma zona muito mais baixa e coberta de verdura; é possível ver a sua silhueta desde Hatton. A estrada de Hatton até Dalhousie, onde começa o trilho que leva ao cume, é das mais espetaculares do Sri Lanka – e a competição na ilha é feroz. O autocarro serpenteia entre colinas cobertas de chá e de floresta densa, passando por lagos e aldeolas tão charmosos que nem a falta de luz de um dia chuvoso consegue deformar. Uma vez em Dalhousie, custa a acreditar que num par de horas conseguimos chegar àquela casa que é uma pinta branca no cimo do monte; não se vê estrada nem caminho – e muito menos a escadaria que sobe pela vertente íngreme do pico.
Na guest house onde fiquei fui vivamente aconselhada a levar roupa quente e a não tocar na vegetação, onde proliferam as sanguessugas. Aconselharam-me também a começar o percurso antes das três da manhã, para garantir que chegava a tempo de ver o nascer do sol. Todos são unânimes em dizer que o cume do monte vale pelo pôr ou pelo nascer do sol. E como não queria enfrentar uma noite no abrigo lá do alto, como muitos cingaleses fazem, decidi assistir ao nascer do sol. Sem saber muito bem o que esperava, a não ser que tinha milhares de degraus pela frente e o tempo estava de chuva, cobri-me de roupa, meti um par de wade no bolso e avancei pela escuridão, de lanterna em punho. Aparentemente, o caminho só está completamente iluminado durante a época alta da peregrinação, que começava daí a dias; se não tivesse a minha própria luz, depois de atravessar a aldeia e a ponte sobre o riacho, não teria conseguido chegar às estátuas de Buda e de Ganesh, e muito menos ao pagode branco construído pelos japoneses no meio dos bosques, mesmo antes do começo da escadaria.
Fui subindo devagar na escuridão quase total, consolada do esforço pela calma do silêncio – até começar a ouvir as vozes de cingaleses que desciam. Minutos mais tarde, já nas escadarias de cimento protegidas por rails, comecei também a ser ultrapassada por atletas apressados que pareciam ter hora marcada com o sol. Infelizmente (?) o sol trocou-nos as voltas e enviou-nos a sua irmãzinha chuva, de quem gosto bastante. Mas isso foi na descida, quando me pude aperceber da beleza dos bosques que tinha atravessado, pintados pelo outono e lavados pela água. Antes disso, tive oportunidade de verificar que os meus conselheiros me tinham mandado subir cedo demais – provavelmente pensando que eu ia demorar 4 horas a fazer uma vereda onde estão previstas 2h30 a 4 horas de caminho. Como a percorri em 2h45, tive de esperar pelo dia no ar gelado e húmido da noite, descalça (é proibido usar sapatos no recinto do cimo), à beira da hipotermia e a lamentar as duas horas de sono extra que podia ter gozado. Toquei o sino a assinalar a minha presença, como é costume à entrada dos templos hindus, e escondi-me num abrigo onde cada vez mais enregelados se amontoavam.
Mal o céu começou a revelar os contornos azuis-escuros das nuvens, saí à espera da magnífica visão da paisagem que, dizem, chega a abranger toda a zona central da ilha, até ao mar. Mas nesse dia, não. A madrugada transportou-nos para uma outra ilha, com o mar em baixo e cabeços negros a toda à volta – ilhéus num mar branco de nuvens. Fotografei as nuvens e o nevoeiro a brincar com os arbustos, não vi a pegada, que se encontrava fechada a cadeado dentro de uma capelinha, e quando começou a chuviscar iniciei a descida Os vales mais próximos estavam enfumaçados, o sol tentava desesperadamente fazer furos nas nuvens espessas, mas a única coisa que conseguiu foi fazer uns furinhos de onde jorrava uma morrinha decidida a encharcar-me.
Atravessei de novo a floresta, e pude ver as silhuetas de penhascos escuros de onde desciam duas cascatas finas que alimentam o riacho do vale, a grande dagoba* branca e as capelas doadas por budistas japoneses. Nessa altura já estava tudo a funcionar: as lojinhas com chá e biscoitos, as banquinhas com doces de sementes de sésamo e amendoins, e os monges que pedem dinheiro a troco de uma bênção e uma guitinha atada ao pulso – o regresso ao nosso planeta de todos os dias, depois da subida a um belo lugar, onde a natureza, brincalhona, gravou o selo do misticismo com a forma de uma pegada.