No Tibete, rumo à montanha sagrada

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O Tibete tem um lugar à parte da minha memória, por uma razão muito simples: a imagem que tinha do país manteve-se depois de lá ir.

No Tibete, rumo ao monte Kailas

O Tibete que encontrei, com uma capital cada vez mais chinesa e o resto do país entregue a si próprio, mas vigiado por postos militares que aparecem a intervalos regulares, era o Tibete que esperava. Mas não foi só a parte má que se cumpriu; também o Tibete mágico do meu imaginário lá estava à minha espera: a sua luz irreal, a visão límpida dos cumes nevados, o silêncio dos planaltos de várias cores, os templos dourados e luminosos por fora e escuros e austeros por dentro, onde os pés se colam à manteiga de iaque que cobre o chão, escorrendo de centenas de lamparinas que lutam desesperadamente contra a escuridão…

Parti em direção ao antigo reino de Guge, onde os portugueses foram os primeiros ocidentais a chegar e permanecer – enquanto os deixaram. Exploradores de nós próprios, viajámos de jipe, com um camião para transportar víveres e tendas, atravessando o território de leste para oeste num percurso de uma beleza alucinante, que nos fez levitar por paisagens que mudam tanto como o mundo, por entre nuvens negras e baixas, jatos de chuva longínqua entrecruzados por raios de sol oblíquos. Se viajasse sozinha acabava por duvidar do mundo em que estava – estaria numa realidade paralela? Quem acredita que podemos ter os pés enterrados em areia branca enquanto chove, quando na paisagem à nossa frente há um sol brilhante, que ilumina um lago azul-turquesa entalado na neve? E que há burros castanhos às listas negras parados à nossa espera, junto à pista de terra que percorremos, para fugirem a zurrar quando nos aproximamos, cobrindo com nuvens de poeira escura os montes nevados em redor?

O centro da viagem foram os sagrados monte Kailas e lago Manasarovar, que distam um do outro meia centena de quilómetros. E quanto mais próximos estávamos, mais aumentavam os milagres: um homem apareceu e desapareceu no nada, antecedido por ovelhas, de fuso na mão e um ar tão selvagem como o seu mundo, cabelo solto e maçãs do rosto queimadas; um grupo de devotos budistas avançava pela pista em prostrações alucinadas, medindo o caminho com o corpo até à montanha sagrada. Quando do último passo avistámos, finalmente, o cume sagrado quase escondido pelas nuvens, gritámos com os três tibetanos que nos acompanhavam: “Tso, tso, tso! La gyalo!” (os deuses sejam vitoriosos).

Provavelmente o lugar mais sagrado do mundo, o monte Kailas tem 6.714 metros de altitude e uma localização extraordinária, com quatro dos mais importantes rios da Ásia a nascerem no seu sopé – o Indus, o Brahmaputra, o Karnali (que alimenta o Ganges) e o Sutlej -, o que lhe confere fortes poderes geomânticos. Representa a criação, o eixo central do mundo, e sua forma lembra a de um diamante em bruto, tão rude e agreste como o próprio planalto de onde se levanta. E as gentes que o habitam.

Darchen é a aldeia de onde se parte para fazer o trekking-peregrinação em redor do monte, sagrado para budistas, hindus, jain e bon, a religião mais antiga do Tibete. Repetida cento e oito vezes, a kora em redor do monte dá acesso direto ao Nirvana, segundo os budistas; mas uma vez basta, se quisermos lavar os pecados de uma vida. Peregrinos de todas as proveniências, mas sobretudo tibetanos, também cumprem a kora do lago Manasarovar, que demora igualmente três dias a completar. Outros circundam a montanha em prostrações, medindo com o corpo os cinquenta e oito quilómetros da base. O alpinismo é completamente interdito e a montanha nuca foi escalada.

Chegámos depois de uma época de peregrinação. A sujidade das ruas e dos lugares para dormir e comer eram o anticlímax do sonho que vivemos. Grupos de peregrinos rondavam pela aldeia, enfeitada por bandeiras de oração e mantras gravados em pedras, crânios e cornos de iaque. Para os dopkas (nómadas) que por aqui ficam durante parte do ano, o asseio limita-se à lavagem da cara e das mãos. Mais do que induzidos pelo clima severo da alta-montanha, também acreditam que, com a sujidade, a água pode levar a sua boa sorte, que é uma coisa quase material que se vai acumulando na pele e não convém apagar.

Os contactos fazem-se com parcimónia e sem efusões. Lembro-me de três homens que saíram de um camião, com o passo bamboleante de marujos em terra que lhes dá as típicas botas de sola arqueada. Vieram sentar-se a curta distância de nós, com as suas escudelas de madeira cheias de tsampa (pasta feita de farinha de aveia), o termos florido do chá e os sacos besuntados de gordura, onde guardam coxas ressequidas de carneiro e iaque que vão cortando em nacos, com os punhais que trazem à cinta. Enquanto comiam olhavam-nos de lado, sorridentes, sem oferecer nada, nem aceitar o que oferecemos; aprovavam a nossa presença sem entusiasmo nem aversão, alguma curiosidade e pouca timidez.

Mais adiante, junto ao lago Manasarovar, o mosteiro de Chiu também não parece real. Encarrapitado num monte em forma de cone, estava a ser pintado de branco por monges diligentes, enquanto bandos de peregrinos se bamboleavam à volta, de rosário em punho; um grande sorriso logo abaixo do chapéu, era o que se via dos seus rostos escuros.

A luz é límpida e deixa-nos ver até muito longe. Nenhum ruído chega ao mosteiro. Até o fumo que sai das tendas dos nómadas parece boiar na atmosfera suspensa das margens. O silêncio só é interrompido pelo cantar dos peregrinos, enquanto se ocupam do fogo ou passeiam junto às margens. Cantigas longas e ondulantes, como a paisagem, continuamente alterada pela passagem das nuvens que brincam com o sol em jogos de luz sobre a água. O tempo parece parado, como se observássemos uma fotografia antiga, e o passado cruza-se com o presente neste lugar mágico, onde o misticismo está na própria terra.

Para conhecer mais profundamente o Tibete, nada como a obra de Alexandra David-Néel, a primeira mulher ocidental a chegar e permanecer neste território ainda desconhecido no século XIX.


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Isabel Alves Outubro 20, 2014 às 8:33

Bonito texto. As palavras rasgaram horizontes e,por momentos, desenharam o silêncio que dizes existir algures no Tibete. As fotografias, essas deixam viajar a imaginação. obrigada!

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Comedores de Paisagem Outubro 22, 2014 às 19:11

Obrigada, Isabel! É bom saber que viajaste um bocadinho comigo…

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Elen Batista Outubro 31, 2014 às 15:42

Sou doida p/ conhecer o Tibete. Acho mto interessante a cultura do povo de lá. Mas tive que adiar temporariamente os meus planos. A minha próxima trip será p/ o Peru, que fica + próximo p/ mim, que moro no Rio de J. Alguém pode me indicar um bom seguro viagem? Bj.

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Comedores de Paisagem Novembro 17, 2014 às 9:56

Elen, eu recomendo o seguro World Nomads no meu site porque tenho testemunhos de amigos que tiveram de o usar e funcionou mesmo!
Quanto ao Tibete, por ser uma área problemática, que tanto está a aberta como fechada aos estrangeiros, reconheço que fui uma privilegiada por poder atravessar o território de uma ponta a outra com um jipe, um camião, e algumas pessoas que conheci em Lhasa! Foram dias indescritíveis… Espero que um dia possa fazer o mesmo!
O Peru também é fantástico. E já agora, o Brasil, onde estive duas vezes, também tem muito que descobrir. Eu adorei!

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vitor rebelo Dezembro 3, 2014 às 15:21

Já tentei ler o livro da senhora em questão e achei tão maçador e enfadonho que desisti.

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Comedores de Paisagem Dezembro 3, 2014 às 15:25

Ooooh! E eu adorei… Aliás li 6 livros da Alexandra, acho eu!

É por isso que o mundo é redondo 😉

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Isabel Sá Julho 31, 2015 às 14:49

Olá! Estou a pensar como prenda dos 18 anos que o meu filho fará no próximo ano ir até ao Tibet já que é um lugar que ele muito quer conhecer (e eu também). Comecei a fazer pesquisas e para além do problema que me posso confrontar com a abertura ou não da fronteira, também já percebi que não podemos viajar sem guia, certo? Podes por favor me indicar com quem fizeste a tua viajem. Obrigada.

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Comedores de Paisagem Agosto 1, 2015 às 9:28

Olá Isabel. Como eu fiz, hoje, pouco importa… na altura aproveitei uma “janela” de abertura do Tibete ao mundo, e esgueirei-me por terra, desde o Paquistão, saindo depois para o Nepal. Aluguei camião e jipe em Lhasa com outras pessoas, para partilhar custos, e percorri o território durante um mês. Agora só em grupo organizado em agência chinesa, se deixarem! As condições estão mais apertadas e, pior que isso, sempre a mudar. Tens de indagar na altura em que vais viajar. Lamento não poder ajudar, mas a verdade é que tive muita sorte em fazer o que fiz.

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