Na Tunísia, a caminho de Beja

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Longe das famosas praias mas não muito longe da capital, ainda é possível encontrar uma Tunísia tradicional e agrícola, recheada de monumentos históricos de um passado romano, andaluz e turco. E também uma cidade chamada Beja.

O charme de El Kef

El Kef é uma das cidades com mais charme da Tunísia – tão ou mais pitoresca que a sobrevisitada Sidi Bou Said, perto de Tunes, mas situada num interior remoto em relação à costa turística, próxima das montanhas que separam o país da Argélia.

Coroado por uma fortaleza de pedra escura alcandorada numa colina, o casario branco de ruas íngremes, por vezes feitas de escadas, desce pela encosta até aos campos verdes e férteis do vale. As portas e portadas são azul-céu e nota-se o esforço de manter a tradição arquitetónica nas construções mais recentes. Cartaginesa e romana antes de ser capital provisória da Tunísia independente, é um lugar para deambular calmamente à descoberta da história, que aparece inscrita por toda a medina em estátuas romanas decapitadas, pedras com inscrições e, ainda mais visíveis, a basílica do século IV e a kasbah defensiva do tempo da ocupação turca.

Difícil é imaginar que esta já foi a terceira maior cidade da Tunísia, nos séculos XVIII e XIX: em três horas damos uma volta tranquila pelo centro da povoação, com paragem para observar o trabalho de algumas portas e os belos ferros forjados azuis que protegem as janelas. Pelas ruelas estreitas passam mulheres cobertas da cabeça aos pés com o tradicional safsari branco, já tão raro nas grandes cidades; mas para mostrar que a tradição já não é bem o que era, grupos de jovens de ambos os sexos convivem na esplanada de um café, coisa que não é muito comum em países islâmicos. Aqui e ali desponta um minarete ou a cúpula de uma zaouia, que na religião católica seria uma capela dedicada a um santo; no islão, que não admite capelas nem santos, são lugares dedicados a alguém que durante a vida foi especialmente benfazejo, e como tal frequentadas especialmente por mulheres, para rezar, pedir favores – ou simplesmente tomar chá e conversar com as amigas.

Numa delas, um belo tecto branco decorado com arabescos é suportado por algumas colunas romanas que encontraram outro propósito na sua já longa vida. Aliás, esta profusão de restos da história também aparece em muros e arcadas que despontam em baldios, lajes inscritas em canteiros junto à kasbah, e mesmo no interior de um cafezinho sem nome, no sopé da medina, recheado de colunas lustrosas, alisadas pelos séculos. E a história cultural da região não se faz apenas de ruínas; é-nos dito que daqui saíram alguns dos mais famosos actores cómicos e produtores de teatro do país.

Do alto da kasbah, a vista sobre os campos mostra-nos porque é que toda a África do norte se tornou o celeiro de Roma após a conquista de Cartago: trigo, azeite e vinho saíam daqui com abundância, e ainda hoje El Kef faz parte da região mais fértil e produtiva do país. Os campos cultivados estendem-se colina acima até às montanhas rochosas mais distantes. Reconhecemos oliveiras, cedros, alfarrobeiras e ciprestes. Mais próximo fica o casario branco, alguns telhados vermelhos de duas águas no meio de terraços, as cúpulas brancas em gomos e o minarete octogonal da mesquita de Sidi Bou Makhlouf, junto às ruínas da basílica, compondo o típico quadro mediterrânico de charme arcaico, mas com um estilo muito próprio.

Dougga, a romana

A caminho de Beja fazemos um desvio, para visitar as ruínas romanas de Dougga e a cidade de Testour. Estrada fora, a região vai revelando as suas diferenças, ainda que vistas apenas da janela do louage, o popular táxi colectivo: florestas de cedros, pinheiros, campos muito bem aproveitados, incontáveis rebanhos e oliveiras. A maior surpresa é ver ruínas romanas bem mais impressionantes do que Conímbriga, por exemplo, cortadas ao meio pela estrada: um arco do triunfo de um lado e um complexo de edifícios do outro; tal é a abundância que leva ao descuido.

Esta era a antiga cidade de Mustis, mas muitos mais vestígios romanos, sob a forma de edifícios, muros e colunas, são visíveis espalhados pela paisagem, envoltos pelo arvoredo ou junto a cemitérios de lajes brancas no cimo de colinas. Dougga é, sem dúvida, o maior e mais impressionante de todos, e por isso é o único lugar histórico que atrai autocarros de turistas em viagem organizada para a zona; o resto é a Tunísia rural e tradicional, entregue a si própria e pronta a ser descoberta por quem não procura apenas a praia.

Testour, a andaluza

O centro de Testour é uma praça que ficaria bem em qualquer ponto da Andaluzia, mas que em África é, no mínimo, inesperada. A razão é histórica: para esta região fugiram muitos dos muçulmanos da Península depois da reconquista cristã, e com eles trouxeram a sua cultura: as casas têm telhados de telhas, em vez dos costumeiros terraços, o minarete da Grande Mesquita lembra as torres da catedral de Toledo, arabizadas pelos azulejos coloridos da parte superior. As ruas retilíneas, os telhados vermelhos das casas com pátios, as parreiras e laranjeiras que lhes dão sombra e decoram a praça, tudo aqui lembra o sul de Espanha. E a cada mês de junho, o festival de música malouf, de ressonâncias andaluzas, atrai milhares de visitantes nacionais e internacionais. Testour não renega as suas origens peninsulares, tão evidentes num simples passeio pelas ruas da parte antiga da cidade.

Um grupo de miúdos oferece-se para chamar o guardião da zaouia semi-abandonada de Sidi Naceur El Karouahi. De chechia vermelha na cabeça, o ancião abre a velha porta decorada com cravos e deixa-nos entrar num pátio empedrado onde se misturam laranjeiras e túmulos islâmicos. A presença de estrangeiros é um divertimento pouco usual para os miúdos, que nos seguem com sorrisos. As paredes e as cúpulas redondas de telhas verdes estão em evidente decadência, mas o interior denuncia a arquitectura mourisca, de estuques trabalhados e azulejos pintados. Diz-se que este é um “santo” especializado na cura da infertilidade, visitado regularmente sobretudo por mulheres. Para nós, é uma ilha de paz perto da rua comercial que sai da praça e vai até ao hammam, com as suas lojas de portas protegidas por telhadinhos pintados de azul.

Beja, Tunísia

A Beja da Tunísia não é parecida com a alentejana. A diferença começa nas ruas nada planas, com portadas azuis nas fachadas brancas mesmo nas casas mais recentes. Parece uma cidade tunisina como as outras, com pequenas lojas que vendem de tudo e uma grande agitação de gente nas ruas. Também aqui há uma colina encimada por uma kasbah, desta vez bizantina, mas como continua ocupada por militares está fora da rota dos turistas. É no dédalo que se estende monte abaixo que encontramos o coração do país: no hammam (banho turco), nos cafés ou nos souks (mercados) desenrola-se a vida comunitária, essencial ao caráter tunisino, que é por tradição tolerante – diz-se que pelo contacto que sempre tiveram com variadas civilizações.

Grupos de anciãos nas suas kachabias castanhas tomam o seu chá ou café à porta do hammam, trocando as novidades do dia. O souk está activo a partir da manhã, com as lojas a abrirem portas pouco a pouco, ao ritmo dos seus donos. Pelas ruas vão aparecendo balcões de legumes, fruta, roupas, marroquinaria, e as próprias lojas extravasam a mercadoria para balcões exteriores. Tudo está dividido por zonas, com a área de roupa, utensílios de casa e parafrenália de casamento (vestidos, cestos forrados a cetim, véus e vestidos de tecidos garridos e brilhantes) numa zona coberta, os géneros alimentares noutra: carne, pão, mercearia. Há quem venha dos montes ali próximos com carregamentos de chás, ervas e mezinhas para maleitas diversas. Um rebanho também pode cruzar-se com o passante, a caminho de algum campo ali próximo. Turistas é que nem vê-los.

É verdade que Beja não tem grandes monumentos, mas é um excelente lugar para nos aproximamos da vida de uma cidade de província, com as suas casas por acabar, os seus gatos vadios, as zaouias de cúpulas redondas frequentadas por pássaros, gatos e, por vezes, cães. Num passeio sem destino descobrimos hammams de bairro, antigas fontes públicas e pelo menos duas mesquitas bem cuidadas, uma delas com um curioso minarete vermelho, em vez do tradicional verde do islão.

Os safsaris misturam-se com roupas modernas numa multidão sempre em movimento. Entre vendedores de romãs e de couves-flor, carroças de piripiri e cestos de pão, saímos da medina e chegamos à cidade nova, para deparar com um outro tipo de confusão: o tráfego intenso e ruidoso interrompe o passeio e obriga a piruetas calculadas para atravessar cada rua. São dois mundos que convivem com um terceiro, o da história antiga, sem rivalidades. Longe do desenvolvimento turístico que há muito invadiu a costa, esta é uma região que conserva ainda o equilíbrio entre tradição e modernidade.

Publicado no magazine Fugas do jornal Público (texto adaptado)


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