O deserto de altitude de Uyuni, na Bolívia, prolonga-se pelo deserto de Atacama, no Chile, num despique de belezas naturais que inclui salares, géisers, vulcões e lagoas de várias cores.
De Uyuni a Atacama
Tudo começa em La Paz, onde regresso como quem volta a casa: as linhas familiares e monumentais da Catedral e da igreja de S. Francisco, e o sempre surpreendente Mercado das Bruxas são locais incontornáveis em qualquer visita, mesmo curta. Desta vez, o mais importante é iniciar o caminho até Uyuni para atravessar o seu gigantesco deserto, que entra pelo Chile e vai até à costa oceânica.
A Bolívia fica bem no coração da América do Sul, com o Chile a separá-la do Oceano Pacífico e o Brasil do Oceano Atlântico. A sua população, maioritariamente andina (cerca de 60%) – sobretudo das etnias quíchua e aimará -, não atinge os oito milhões e vive sobretudo nos planaltos montanhosos que ocupam cerca de 20% do país, a cerca de 4.000 metros de altitude. Uma parte destes planaltos desérticos é ocupada por salares como o de Uyuni, que fazia parte, há 40.000 anos, de um lago pré-histórico; hoje, esta é a maior planície de sal do mundo, com 10.585 km2, e pensa-se que terá cerca de 10 biliões de toneladas deste mineral.
Para lá chegar, corto o percurso em partes: primeiro, a viagem de autocarro entre La Paz e Oruro, aldeia mineira nos contrafortes dos Andes que apenas se anima durante a Diablada, a grande festa do Carnaval. Aí começa uma bela viagem de comboio até Uyuni, percorrendo serras inóspitas e as margens do lago Poopó, onde bandos de flamingos se exibem ao pôr-do-sol.
Certamente ninguém viria até Uyuni, lugar poeirento e remoto, não fora a proximidade do maior salar do mundo. A praça principal é feita de agências que propõem as mais variadas aproximações a esta zona dos Andes e, com o pressuposto de que me dirijo a S. Pedro de Atacama, no Chile, tudo se resume a comparar preços e serviços. Cada jipe leva seis turistas, que partilham não só o transporte mas também as refeições e as pensões rústicas, geralmente com dormitórios. Mas as paisagens que atravessamos e os lugares extraordinários onde paramos são de tal modo espetaculares que nos absorvem toda a atenção, libertando-nos os olhos apenas ao fim do dia, quando a luz acaba.
Começa tudo pelo salar. O chão é de sal, assim como a estrada. Em Colchani podemos ver como é produzido e usado em construções de casas. O ar é límpido, puro – e provavelmente salgado. A paisagem parece feita de gelo e neve, esteja o dia nublado ou com sol. São quilómetros de brancura em todas as direções e até os montes próximos têm os flancos cobertos de branco – neve ou sal? O chão achata-se e desdobra-se numa loucura geométrica de hexágonos distorcidos. Paramos no local mais branco que encontramos, de um branco tão ofuscante como o da neve. Mexemos no chão, tateamos nos rebordos dos hexágonos, provamos aquela terra que nos queima os lábios e a pele – é mesmo sal puro, pronto a usar. Sentamo-nos numa gigantesca colmeia cristalizada, enquanto o sol cai mais uma vez nos cumes nevados da montanha, mudando a cor do céu, dourando as encostas. Só o chão permanece igual, como se tivesse luz própria.
Ao fundo aparece a sombra negra da ilha Incahuasi, monte de pedras milenar que sobressai do branco, coberto de catos em flor, alguns deles com mais de mil anos. A seguir desfilam as lagoas. De todas as cores: vermelhas, brancas, azuladas e a “colorida”, a Laguna Colorada. Bandos de flamingos vivem por ali em paz, esvoaçando com elegância e mergulhando o bico nas águas salgadas. Manadas de lamas e vicunhas fazem aparições fugidias, para provar que é possível viver entre vulcões, junto a lagos de água salgada e com um clima onde a menor das intempéries é o vento cortante que nos acompanhou. Atravessamos os desertos de altitude e terminamos com géisers e fumarolas, junto a um lago de água quente onde se escavou um tanque para aquecer os turistas enregelados que tenham a coragem de se despir e meter lá dentro.
Atacama, o deserto dos desertos
A fronteira com o Chile é constituída por dois barracões no meio do nada, mas dois furgões de passageiros esperam os jipes que vão chegando e partem logo que estão cheios, em direção a S. Pedro de Atacama. Aí, somos revistados e avisados: proibida a entrada de qualquer produto vegetal e, sobretudo, nada de folhas de coca. Chegámos ao Chile, uma longa tira de território com 4.300 km de comprimento e uma média de 175 km de largura, entalada entre os Andes e o Oceano Pacífico.
San Pedro de Atacama tem cerca de 5.000 habitantes e fica a 2.400 metros de altitude. As ruas são limpas e ordenadas, os restaurantes modernos, e há muitos turistas americanos. Mudou muito nos últimos tempos: de pequeno oásis poeirento em pleno deserto, com casinhas baixas de adobe arrumadas em ruas quadrangulares em volta de uma praceta sombreada, transformou-se numa aldeia mundana de preços citadinos. A história e as extravagâncias naturais da região são o que tem vindo a atrair cada vez maior número de visitantes a este canto perdido do deserto de Atacama. Nomeadamente o espantoso Vale da Lua, a Pucará (fortaleza) de Quitor, do século XII, e os géisers de El Tatio. Os turistas encontram agora um lugar confortável onde ficar enquanto enchem os dias de beleza.
O deserto de Atacama é considerado o mais seco do mundo, com uma precipitação média de duas a quatro chuvadas por século. O seu salar estende-se aos pés dos Andes, de onde se destaca o fumegante e majestoso vulcão Licancábur, que ronda os seis mil metros de altitude. No Vale da Lua encontramos montes cinzentos com uma camada branca de sal por cima, dunas rosadas, pilares de areia petrificada, cristas duras de pedra com aspeto cortante. A paisagem é verdadeiramente extra planetária a perder de vista. Às vezes o chão cega-nos, mas apagada a luz ofuscante do dia há milhões de estrelas que revezam o sol na tarefa de espalhar sombras e revelar contornos. As temperaturas variam entre os zero e os quarenta graus, mas aqui chegam a passar dos cinquenta, nesta depressão com uns quinhentos metros de diâmetro, feita de dunas e rochas trabalhadas pelo vento que mimam com perfeição a superfície lunar.
E para absorver a beleza silenciosa do deserto, nada como passear em solitário com as luzes macias da manhã e da madrugada. Passo a passo, pelas estradas e estradões que cruzam um dos nadas mais impressionantes do planeta.
Já passaram quase dez anos desde que andei por aqui. Fantástica região do globo, sem dúvida! Beijinhos e força nessas viagens! 🙂
Obrigada, Filipe – espero lá voltar em breve!
😉
Oooh..adoro, adoro!!! Uma das minhas viagens de sonho é à América do Sul e este deserto é um dos sitios que mais desejo ver, fico estarrecida cada vez que olho para as fotos!!
Líndissimo, adorei o post!!
Já agora uma curiosidade, como é comer nestes países? Há opções vegetarianas ou é difícil ter uma refeição?
Obrigada 😉
Patrícia, este mundo não é para nós… mas consegue-se sempre qualquer coisa!
Há feijão, batatas, legumes e frutas. Como sempre, ou se fica no lugar algum tempo e se pede nos restaurantes que frequentamos, ou vamos diretos aos mercados abastecer. Para a travessia do salar de Uyuni, como as agências que fazem as viagens de jipe têm de levar comida, podemos pedir opções vegetarianas para esses dias…
Não queres vir comigo? 😉
A viagem mais surpreendente que fiz até hoje. Passados quase 8 anos, não me voltei a cruzar com paisagens tão arrebatadoras.
Desejos de muitas e grandes barrigadas de paisagens.
Obrigada, Sofia!
Por acaso estou totalemte de acordo! No planalto boliviano há sítios que são de outro planeta!
Uma barrigada de paisagens estranhas e de silêncio…
Saudades… a matar em breve! 🙂
Muito bonito, está no topo da minha lista!
Partimos em agosto, Hugo! 😉
Gostava mas comecei agora a trabalhar em Dublin e nos próximos tempos só sairei daqui para umas visitas de médico a Portugal e para a tour dos U2. Espero que quando sair a sério seja para iniciar a “minha” volta ao mundo 🙂
Mas estarei atento à vossa viagem.
Força então! Espero que estejas feliz aí! 🙂