Esticar o Dedo, ou a arte de andar à boleia

Coisas do Mundo

Quem é que nunca viajou à boleia (antes de ver o filme “Terror na Auto-estrada”, claro)? É um dos meios mais divertidos de viajar, o mais económico, e ainda constitui uma rápida introdução às gentes locais. Com sorte, fazemos amizades; no mínimo, obtemos boas informações – e no caso das mulheres, fica-se a conhecer o per capita de engatatões desgovernados da zona.

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A boleia como uma arte

O transporte à boleia é praticado em todo o mundo, mas há detalhes que devemos conhecer antes de nos dedicarmos a esta arte.

De um modo geral, devemos escolher o veículo (uma motoreta antiga é desaconselhada, assim como um carro cheio de crianças), e não dizer para onde vamos; devemos, isso sim, convencer o condutor a dizer-nos qual é o seu destino. Também por motivos de segurança, é melhor andar à boleia com um parceiro/a, de preferência magrinho – não como um amigo meu da adolescência que tinha de se esconder até que algum carro parasse, uma vez que a sua massa corporal era três vezes superior à minha.

Depois, há as regras culturais de certos países. Por exemplo: na Ásia não se estica dedo nenhum para pedir boleia; abana-se gentilmente a mão com a palma para baixo. Esticar o polegar, ou qualquer outro dedo, é como esticar o médio – e o mais certo é que o carro, em vez de parar, nos passe por cima. Também é normal, nestas paragens, pagar as boleias, e para isso é melhor acertar o preço antes, não vá dar-se o caso de estarmos perante um ganancioso sem vergonha e o trajecto nos saia ao preço de uma viagem de avião.

A boleia mais difícil que já apanhei foi na Guatemala: um dia inteiro à espera num cruzamento, até que pelas cinco da tarde passou um camião cheio de bananas. Ainda coubemos nós de pé (éramos dois), cada um em cima do seu caixote. Subimos montes acima até Nebaj, com o sol a pôr-se e os galos a anunciarem o fim do dia. Ao anoitecer chegámos à aldeia, onde mulheres de saia vermelha e xaile de pompons enrolado à volta da cabeça passavam na rua a sorrir, e as crianças mais bonitas do mundo vinham espreitar as bananas e os estrangeiros.

O meu maior revés foi em Portugal, entre Vila Nova de Cerveira e Caminha. Já estava tão farta de esperar por uma boleia que jurei a mim mesma que apanhava qualquer coisa que passasse, à excepção de um camião de peixe. Pois ainda hoje me parece mentira, mas foi mesmo um camião com caixotes vazios de peixe que nos levou, a mim e a uma prima morta de riso. Só nós e os caixotes. E o fedor.

A melhor boleia foi a que apanhei na ilha do Faial, nos Açores, a subir para a caldeira. Ninguém compreendia que se pudesse gostar assim tanto de caminhar, e não faltava gente amável a parar o carro e a insistir que entrássemos, que ainda era longe. Recusámos sempre, até que apareceu uma proposta verdadeiramente irrecusável: um caterpillar. A excelente alma que o conduzia baixou a pá enorme para nos sentarmos e depois subiu-a; e ali fomos, sentados na pá, devagar como se caminhássemos, mas com uma vista muito melhor sobre a paisagem.

A que leva o prémio de mais extraordinária foi a boleia que apanhei no Tajiquistão, que me salvou a mim e a mais duas amigas de mais umas horas paradas na estrada, à espera que o condutor reparasse o transporte público que nos devia levar a Duchambé. E eu, que sempre sonhei conduzir um grande camião, vi-me a percorrer os estradões de terra que seguem ao longo da fronteira com o Afeganistão, por montanhas e aldeias remotas, sentada naquela maravilhosa cadeira panorâmica e apreciando um país que nunca mais esqueci…

E para terminar, o condutor, agradecido pela companhia na longa viagem, ainda insistiu em oferecer o jantar. Há dias assim.


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Quando viajo faço sempre um seguro de viagem pela Nomads


yup.pt Janeiro 21, 2016 às 11:32

Assegurados alguns cuidados básicos, é uma forma forma interessante de viajar, não só como último recurso. Ainda recordo com saudade as minhas viagens entre Coimbra e a Serra da Estrela, à boleia pela antiga Estrada da Beira, com gente muito interessante, especialmente, os camionistas.

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Comedores de Paisagem Janeiro 23, 2016 às 17:23

Os encontros são o melhor das boleias… 🙂

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yup.pt Janeiro 24, 2016 às 23:45

Sem dúvida, e quanto mais inesperados, maior memória fica. E, por inesperados, entenda-se que seja algo de positivo 😉

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Comedores de Paisagem Janeiro 27, 2016 às 15:09

Concordo muito! 🙂

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Marta Chan Janeiro 21, 2016 às 12:30

Que saudades de andar a boleia, sao sem dúvida as melhores histórias das viagens! Já fomos de boleia com a polícia, de táxi, num camião com várias cabras, num tractor… Já deixamos lá uma mochila com passaportes, dinheiro e cartões e o motorista pagou a um senhor para dizer os nossos nomes num megafone e assim devolveram a mochila…

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Comedores de Paisagem Janeiro 23, 2016 às 17:19

É esse o espírito, Marta! 🙂 Medo a mais corta as asas… 😉

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gabriela Janeiro 28, 2016 às 23:17

Que histórias tão ricas. Viajar à boleia é, de facto, uma das melhores formas de viajar, especialmente numa carrinha com caixas de peixe 😉
Há uns tempos escrevi um artigo com dicas úteis para viajar à boleia no meu blog (este: http://desviagens.com/?page_id=2289) , hoje encontrei este teu artigo e criei uma ligação às tuas histórias que, certamente, inspirarão quem as ler. Um abraço enorme!

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Comedores de Paisagem Janeiro 29, 2016 às 11:15

Bem, Gabriela, as dicas que dás são para “boleiistas” profissionais! 😉 Fantástico!
As minhas boleias surgem quase sempre de situações em que “dá jeito”, e não de uma decisão de fazer uma viagem totalmente à boleia… e resultaram sempre lindamente!

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gabriela Janeiro 29, 2016 às 15:55

Também é ótimo assim, espontaneamente ! A ideia é, por um lado, demonstrar que sim, podes fazer uma viagem inteiramente à boleia, só que claro, é preciso dedicação, mas as carteiras agradecem e as barrigas também, porque dá sempre pra gargalhada! Eu nunca levo tudo à risca, mas há imensa gente que tem medo de o fazer e que adoraria e o artigo é-lhes dedicado. Mas a verdade é que, depois de várias horas na estrada e de viagens longas estas são as coisas que sempre lamentei: estou a morrer de cede! ficámos no meio do nada, e agora, porque é que não temos tenda. Que fome, que fome! E este sol? Não aguento mais.
Um abraço enorme 🙂

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Comedores de Paisagem Fevereiro 4, 2016 às 9:52

Fico muito contente de “ouvir” outra “dama” falar assim 🙂 Grande parte tem muitos medos, geralmente baseados em histórias dramáticas mas isoladas. Estamos aqui para o provar, ou não estamos? 😉

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