Se o Império Inca foi uma das mais extraordinárias sociedades humanas e Cuzco foi a sua capital, isso já diz muito sobre o que se pode encontrar ao visitar a moderna cidade de Cuzco, no Peru.
Cuzco, capital do Peru
O Peru sem Cuzco não era o mesmo país. Para além da riqueza monumental que nos conta a história da cidade – e do Peru, como nação – numa simples caminhada pelas ruas, a eterna “capital dos incas” fica estrategicamente colocada para quem quer prolongar a viagem pelo Vale Sagrado, Machu Picchu, ou Lago Titicaca.
Arrasada e saqueada durante séculos, Cuzco continua a ser capital – agora cultural e turística – do Peru, embora os restos grandiosos dos incas sejam escassos; o que sobra é um rasto de igrejas e praças que revelam uma história colonial literalmente arrasadora, que sistematicamente tentou obliterar o passado construindo igrejas sobre templos, mansões de governadores sobre palácios de caciques. E mesmo que a chuva nos persiga e retire luz a este extraordinário lugar protegido pela UNESCO, o tempo e as pedras, mais pesadas por causa da água, envolvem e encantam quem chega.
Encaixada num vale fértil dos Andes a cerca de 3400 metros de altitude, no sopé do monte Huanacauri, Cuzco foi uma cidade rica no centro da rota comercial transandina. Depois de uma ocupação pré inca de cerca de 3000 anos, tornou-se capital do Império Inca, que nos séculos XV e XVI cobria grande parte dos Andes. A cidade foi criada como um centro urbano complexo, com um núcleo composto por templos, edifícios administrativos e casas das famílias nobres, claramente isoladas das zonas onde viviam artesãos e agricultores, em bairros igualmente delimitados.
Aqui, os séculos acumularam-se em camadas. A primeira é feita de paredes de granito ou andesite, encaixadas com uma técnica que já se perdeu, formando um puzzle de peças únicas. Inclinadas para o interior, como para formar a base de uma pirâmide (truque sábio para contrariar os estragos causados por sismos), estas paredes e muros parecem feitos de pedras inchadas, como almofadas de rocha. A estética é impressionante e aparece por todo o lado, em qualquer das ruas retilíneas que formam a cidade.
A segunda camada é a da cidade colonial, de casas brancas e igrejas barrocas, que partilham com a primeira camada o desenho inca: ruas retas e um centro, que antes era o local da celebração anual em honra do Sol, o Inti Raymi agora é a Praça de Armas. Muitas vezes as paredes foram feitas acrescentando pedras sobre as outras, com uma técnica completamente diferente, criando o que é hoje reconhecido como um sincretismo arquitetónico único. Outras vezes, como no caso do Convento de S. Domingos, construído sobre o Templo do Sol e descoberto quando de um terramoto, sobrepõe-se simplesmente um edifício com outro: a catedral foi construída sobre o palácio do Inca (Imperador) Viracocha, a Companhia de Jesus sobre o palácio de Huayna Cápac …
Desde a descoberta de Machu Picchu que Cuzco se impôs também como capital turística: à volta da Praça de Armas e nas ruas que vão dar à estação de comboios não faltam restaurantes de todos os tipos, lojas de artesanato de luxo e agências de viagem que vivem de tirar os turistas dali, sobretudo em direção ao Vale Sagrado. No Bairro de San Blás desfilam turistas e indígenas encantadoras, quase sempre mulheres de trajes típicos a rigor, que posam para uma foto a troco de alguns soles. Num dia de chuva – e há muitos, em Cuzco – são a única cor numa cidade de pedra e paredes brancas, um arco-íris de sorrisos (pagos, é certo) que aparece quando menos se espera.
Vale a pena ficar por uns dias, assistir às danças espontâneas de grupos de estudantes ao cair do dia, subir ao miradouro e caminhar pelos arredores à procura de mais pedras fabulosas – ou de dois dedos de conversa fácil com os cuzqueños, aparentemente reservados mas calorosos, e muito ciosos da sua terra e cultura. Como a dona do quiosque com quem falava diariamente, que me perguntou de onde era e há quanto tempo viajava: “ Tres meses? Y no estrañas a Portugal?”
Um pouco mais de história
Cuzco (ou Cusco) foi capital do Império Inca desde o seu início, no século XI – XII, até ao seu declínio, no século XVI. Durante estes cinco séculos, o território uniu os seus ayllus (comunidades indígenas) debaixo do desígnio de um imperador, ou Inca. A submissão foi económica e espiritual e obedecia a um planeamento rigoroso a nível de trabalho, agricultura e planeamento de reservas alimentares para os anos maus, vias de comunicação e organização política permeável, que incluía a distribuição do poder por chefes vencidos e vencedores, responsáveis pelo seu grupo familiar e pela comunicação com o governo central do Inca. A perda das liberdades individuais era a preço a pagar por pertencer a um império onde (quase) tudo estava previsto. O sistema de controlo rigoroso foi levado ao extremo pelo mais poderoso dos monarcas, Pachacuti, responsável pela imposição do quechua como língua comum e pela construção dos principais monumentos de Cuzco, como Qoricancha, o Templo do Sol.
A cidade também está historicamente ligada a lutas independentistas e dos direitos indígenas, como as rebeliões de Túpac Amaru e Tupac Amaru II, nos séculos XVI e XVIII, que terminaram ambas num banho de sangue. E nos inícios do século XX, a mesma luta emerge na criação da primeira célula comunista do Peru, que valeu à cidade o nome de Cusco Rojo.