As duas faces do Evereste

Destinos

A mais alta montanha do mundo é demasiado imponente para se cingir a um só país; generoso, o monte Evereste espalha a sua beleza imponente por território nepalês e tibetano, prolongando as suas encostas nevadas e vales glaciários por muitos quilómetros em redor do cume, por vezes mais visível ao longe do que ao perto.

Evereste: uma montanha, dois países

É verdade que poucas coisas se medem aos palmos, e a beleza não é, certamente, uma delas. E também é verdade que das três montanhas mais altas do mundo, a mais bonita até é a segunda – o K2, no Paquistão. O Evereste é um “clássico” dos trekkings – como é costume chamar à marcha em trilhos de montanha -, por se tratar de uma aproximação ao ponto mais alto do planeta, mas também por se tratar de caminhadas por uma paisagem belíssima, que se fazem em uma ou duas semanas – embora mereçam o dobro do tempo. E se a face norte, situada no Tibete sob controlo chinês, nem sempre esteve aberta aos turistas, a face sul, no Nepal, está em território turístico por excelência, com infraestruturas apenas básicas mas que já existem há muitas dezenas de anos.

Qualquer das aproximações é tentadora para quem tem fascínio por montanhas. Os campos verdes dos arrozais em socalcos vão dando lugar a vales largos de vegetação baixa e rala, que por sua vez se transformam num chão vazio, de pedras, até que se chega ao gelo dos glaciares e à neve. Deixamos para trás aldeias de gente rude e forte, verdadeiros sobreviventes num ambiente hostil onde poucos conseguem prosperar. E à medida que subimos, entramos numa atmosfera mágica: o ar é cristalino, permite ver até mais longe, o céu toma um azul cada vez mais escuro, o silêncio é quase total, se excluirmos o ranger da neve debaixo das botas. A escassez de companhia humana e uma adaptação perfeita do corpo à altitude permitem-nos entrar na dimensão mais fascinante do planeta – a altitude – com uma preciosa sensação de ausência física. Talvez pela rarefação do oxigénio, talvez pelo exercício intenso que é subir e descer trilhos de terra, pedra e neve durante horas, sente-se uma ligeira euforia e temos uma atenção quase mística a tudo o que nos rodeia. Não é por acaso que a religião mais vivida nas altitudes dos Himalaias é o budismo; sem querer, viramo-nos para dentro e tomamos consciência de nós, microrganismos do universo.

Para os nepaleses, o monte baptizado de Evereste pelo etnocentrismo ocidental é Sagarmatha, “Aquela cuja Cabeça Toca as Nuvens”; para os tibetanos é Chomolungma, a “Deusa-Mãe do Universo”. Tem oito mil oitocentos e quarenta e oito metros de altitude e é apenas um dos muitos picos que formam a “Morada das Neves”, uma tradução possível de Himalaias.

Nepal: Aquela cuja Cabeça Toca as Nuvens

A camioneta de Katmandu chegou ao fim da tarde, a tempo de comer bem e encontrar um quarto numa pensão, para a última noite abaixo dos dois mil metros. Estamos em Jiri, no Nepal, e a partir daqui, o trilho que nos leva ao longo do vale de Solu até ao vale de Khumbu, onde fica o Evereste, sobe e desce intensamente, atravessando vales e ravinas estreitas, florestas e arrozais em socalcos. Para já estamos numa zona fértil, comparada com a terra de pedra e gelo do Khumbu. As magnólias e as cerejeiras florescem no começo do Inverno e dão uma graça especial à paisagem que, apesar de já ser grandiosa, não tem a imponência das cordilheiras nevadas mais acima. Como a neve ainda não chegou aqui, os “cafés” que acompanham os trilhos estão abertos desde madrugada, oferecendo aos passantes chá com leite e dal bhat, o prato nacional nepalês, composto de arroz e molho de lentilhas.

E não falta quem percorra os trilhos: turistas são poucos nesta zona, mas são muitos os nepaleses que circulam pelos caminhos, carregados de cestos pendurados à testa por uma fita, a caminho de Jiri ou de Namche Bazar, a capital do país sherpa, cujo mercado de sábado reúne mercadorias de toda a Ásia. Alguns têm a ajuda de iaques ou dzopkos (cruzamento de iaque com vaca) e levam tudo o que é necessário montanha acima, para além de alguns artigos negociáveis, como cerveja, para os estrangeiros. Na sua maioria estes carregadores profissionais são sherpas, e estão completamente adaptados ao esforço em altitude. O budismo veio com este povo originário do Tibetesherpa significa “gente de leste”- que aqui chegou há cerca de cinco séculos, e é a segunda religião do Nepal, país maioritariamente hinduísta.

Em muitos locais os trilhos são tão estreitos que só permitem a passagem de uma pessoa – ou animal – de cada vez e, como se não bastasse, as pontes são construídas com meia dúzia de tábuas que parecem penduradas por fios sobre rios selvagens, de águas baças e turbulentas. De vez em quando, uma ponte quebrada ao lado da que atravessamos confirma que os acidentes acontecem mesmo.

Em Junbesi funciona uma das escolas criadas pelo famoso alpinista Edmund Hillary, cuja Fundação deseja promover o desenvolvimento e nível de vida dos povos dos Himalaias, e inclui também hospitais. No fundo do vale espreita o grande dente branco do Shorong Yul La, o “deus do Solu”, em sherpa, e mais acima funciona uma fábrica de queijo de nak (a fêmea do iaque), de onde se avista uma cordilheira nevada de uma beleza perfeita, constituída por alguns dos nomes mais sonantes para os apaixonados de montanhas: Makalu e Evereste, entre outros. Apesar de se subir pouco em termos de altitude, nesta primeira parte do trekking – o ponto mais alto do Solu fica a pouco mais de três mil e quinhentos metros -, as paisagens paradisíacas e as aldeias hospitaleiras de etnias diferentes são uma larguíssima e mais que justa recompensa para quem gosta de caminhar: sherpa, chhetri, rai e tamang são as “famílias” étnicas mais comuns, cada uma delas com a sua língua, a sua religião e costumes diferentes; As casinhas, pequenas e graciosas, distribuem-se pelos socalcos (ainda) verdes e, graças à latitude do Nepal – a mesma do Egito -, as temperaturas são relativamente altas, com as neves eternas a começarem só lá para os cinco mil metros. Para já, abundam as florestas de coníferas e rododendros, cheias de piares de pássaros, estalidos de ramos que indicam a passagem de veados ou faisões; antes do aeródromo de Lukla, chegamos mesmo a ver macacos. Depois de Lukla a paisagem começa a mudar, o esforço intensifica-se à medida que a altitude aumenta, os trilhos ficam cada vez mais bloqueados com grupos de montanhistas e caravanas de iaques que carregam material de expedições. Esta é a parte mais popular e frequentada do trekking do Evereste; mais de 60% dos estrangeiros tem pouco tempo e procura, numa quinzena de dias, satisfazer o que, às vezes, é o sonho de uma vida: ver Sagarmatha, a montanha mais alta do mundo. Para isso voam de Katmandu para Lukla e daí sobem até Namche Bazar.

De outubro a dezembro, Namche está cheia de turistas e cada casa parece ter-se transformado numa pensão; se não escolhermos bem o local, corremos o risco de pensar que estamos nos Alpes, tal a quantidade de alemães e franceses. Mas se no Solu caminhávamos a olhar para uma paisagem verdadeiramente paradisíaca, no Khumbu estamos dentro dessa mesma paisagem, e basta levantar a cabeça para dar de caras com as gigantescas montanhas que cercam a povoação. É aqui que começam a surgir os primeiros problemas de aclimatização, sobretudo para quem veio de avião ou helicóptero.

Para continuar em direcção ao campo-base do Evereste, convém subir devagar. Até Khumjung, por exemplo, onde a escola primária e o vizinho hospital, ambos fundados por Edmund Hillary, funcionam durante todo o ano, uma vez que estamos apenas a três mil e oitocentos metros de altitude. Já Pangboche, uns duzentos metros mais a acima – umas boas três horas de marcha -, é a última aldeia permanentemente habitada; durante o Inverno, os sherpas e as suas manadas de iaques descem para terras que não sofram tanto com os grandes nevões, como é o caso dos lagos Gokyo ou de Gorak Shep, onde o miradouro natural que é o monte Kala Pattar permite uma visão fabulosa sobre o Evereste. Os últimos a fechar são os albergues de pedra onde, com meia dúzia de tábuas, se improvisam as tarimbas onde dormem os montanhistas, à volta duma salamandra que consome bosta de iaque seca e faz mais fumo que calor. Normalmente, numa divisão com chão de terra batida improvisa-se uma cozinha de onde saem alguns pratos simples que, com vista para os fabulosos picos nevados que nos rodeiam, sabem ao melhor dos pitéus.

Apesar de estarmos cada vez mais alto, os olhos continuam a ser irremediavelmente atraídos para o céu. Um paraíso de montanhas agrestes e inóspitas, pintadas de branco, desenrola-se diante de nós. É inútil declinar nomes de lugares, aldeias, rios: a neve cobriu tudo com um manto branco homogéneo. Só os cumes sobressaem: as flautas de gelo do monte Lotse, a magnífica bossa do Ama Dablam, o longínquo Cho Oyu. Afinal, o Evereste só é a montanha mais alta do mundo por escassas dezenas ou centenas de metros – à nossa volta, quase todas ultrapassam os sete mil e quase todas são mais bonitas que aquela pirâmidezinha modesta, que só se avista acima dos cinco mil metros, do cimo do Kala Pattar ou do Gokyo Ri. Desses cumes, a visão é prodigiosa e abrange glaciares, lagos, vales escondidos por trás de montanhas e até algumas avalanches, que explodem em apoteose pela encosta abaixo, levantando nuvens de neve de um branco azulado. O dia começa com o sol a escorrer pelas vertentes, e termina com o acender de picos cor de fogo sobre um céu quase negro. O resto é caminho.

Tibete: A Deusa-Mãe da Terra

Cheguei à aldeia de Tingri vinda dos planaltos interiores do Tibete, horizontes infinitos onde se podia ver chover a muitos quilómetros, e onde os raios de sol caíam sobre lagos distantes e montes de areia, enquanto o granizo desabava sobre nós. Ao contrário do que se possa pensar dum país onde a altitude média ronda os três mil e quinhentos metros, só há neve mesmo nos cumes: a paisagem é feita de montanhas, sim, mas com cores variadas, do verde ao alaranjado – qualquer coisa entre a Islândia e o Havai –, interrompidas por lagos azul-turquesa, dunas de areia branca, campos amarelos de flores de mostarda. Gente, muito pouca, distribuída por algumas aldeias pobres e muitas tendas escuras isoladas, que acompanham os pastos de Verão.

Tingri não é especialmente bonita, mas fica na chamada “friendship highway”, a “auto-estrada da amizade” que liga o Tibete ao Nepal, percorrida regularmente por jipes de turistas que vêm de Katmandu com o propósito de ver Chomolungma e Lhasa, a capital do Tibete. Algumas lojas e pequeníssimas pensões servem de base para este turismo de passagem, que deixa a parte da aldeia mais afastada da estrada praticamente intocada, as suas casa brancas e baixas enfeitadas pelas bandeiras budistas com o mesmo aspecto tipicamente tibetano desde há séculos, os pastos e campos mais ao longe, antes das primeiras encostas das montanhas. Do Evereste, nem sombra vimos.

Só no dia seguinte iniciámos a subida que nos leva até Rongbuk, quase a cinco mil metros, o mosteiro mais alto do mundo, e ao seu vale estreito, que dá acesso a Chomolungma. Primeiro tivemos de vencer uma estrada de terra íngreme como poucas, cujos ziguezagues talhados na encosta desapareciam no cimo, como se o limite fosse o céu. De uma passagem acima dos cinco mil metros, um miradouro devia deixar-nos ver a cordilheira, mas as nuvens decidiram que não. Parámos para comer numa grande aldeia no fundo de um vale, onde passavam homens de cavalo pela arreata e punhais à cinta, com o passo bamboleante de marujos em terra firme causado pelas botas típicas, de sola arqueada. Só as crianças mostravam alguma curiosidade, espreitando pelas janelas e procurando algum contacto, sempre tímidos e sorridentes.

Por fim, subimos até Rongbuk. O mosteiro é anunciado por um enorme chorten, uma construção em forma de sino que representa o universo e os seus elementos, e que acompanha qualquer comunidade budista, seja aldeia ou mosteiro. Apenas uma trintena de monjes e monjas habitam aqui, e os restantes seis mosteiros que existiam no vale estão agora em ruínas. E se este não for o mosteiro mais alto do mundo é, com toda a certeza, o mais frio: de dia e de noite o ar é gélido, e um vento cortante acompanha-nos quando partimos a pé, na manhã seguinte. Ao fundo do vale, resplandecente como se tivesse luz própria, levanta-se Chomolunga. E vista daqui, sem dúvida que esta é a “Deusa-mãe da Terra”. Se do lado nepalês todas as montanhas parecem ter formas e tamanhos impressionantes, no Tibete tudo o resto desaparece ao pé da incomparável beleza do Evereste. Estrategicamente colocada no fundo de um vale sombrio onde corre um rio baço, muda de cor conforme a altura do dia e ofusca todas as outras em redor com sua imponência e, sobretudo, com a sua beleza extraordinária.

Não tivemos outro remédio senão percorrer o longo vale contra o vento, atingir o glaciar e dormir ao som dos gemidos e explosões que acompanham o movimento lento do gelo. No dia seguinte deixámos de ver a nossa deusa: estamos de tal maneira próximos que qualquer monte nos tapa a visão sobre a sua majestade. Subimos lentamente sobre um chão que parece vidro, coberto por alguma terra e muita pedra, que escorrega perigosamente. Dos dois lados erguem-se seracs ou penitentes, pedaços de gelo trabalhados pelo vento que chegam a atingir os trinta metros de altura. Lembram dentes aguçados ou velas de barco, erguendo-se abruptamente do cascalho escuro que cobre o glaciar. Alguns riachos violentos serpenteiam entre eles, e atravessamos duas pontes de gelo gotejantes para prosseguir. À nossa volta tudo está negro, como que calcinado: o chão, as vertentes e os picos aguçados dos montes que formam o corredor por onde avançamos. Parece não haver uma flor ou arbusto que consiga sobreviver neste lugar inóspito. As nuvens baixam, largando chuva, granizo, pedras de gelo que nos chicoteiam. Acabamos por descer antes dos seis mil metros, sem ter uma visão mais aproximada sobre a Chomolungma.

Parece que, não fora a erosão constante, o monte Evereste já teria ultrapassado os onze mil metros de altura. E esta extraordinária montanha que ainda não parou de crescer, também tem movimento próprio: desloca-se em direcção a nordeste cerca de seis centímetros por ano. Com a lentidão e a solenidade próprias de uma deusa, acompanha o movimento tectónico dos Himalaias, num movimento invisível em direcção ao céu.

Adaptado de texto publicado no magazine Fugas, do jornal Público


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Ana Lopes Junho 14, 2013 às 19:58

Acho o site muito interessante e com fotos de grande qualidade e beleza.
Parabéns

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Comedores de Paisagem Junho 16, 2013 às 12:07

Muito obrigada pela apreciação, Ana. O site pretende reunir peças importantes da minha vida – as viagens, a leitura, a comida vegan… – e todas as semanas há pelo menos um post novo. Fico à espera de mais comentários 🙂

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Ana Lopes Junho 14, 2013 às 19:59

Penso que já deixei um comentário.
Obrigada

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Comedores de Paisagem Junho 16, 2013 às 12:07

Já sim – e teve resposta!

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Jocelaine Março 8, 2015 às 10:22

Nessa manhã de domingo me deliciei com seu texto. Depois dormi e sonhei com meu sonho, ver a ‘Deusa mãe’.
Parabéns pelo texto, senti como se estivesse lá!

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Comedores de Paisagem Março 8, 2015 às 10:31

Muito obrigada, Jocelaine, era isso mesmo que eu queria: que as pessoas conseguissem viajar, mesmo em casa! 🙂

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Elson Barros Julho 23, 2017 às 2:11

A vontade que dá e a de pegar a mochila e partir agora. Parabéns pela narrativa e pelas fotos.

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Comedores de Paisagem Setembro 22, 2017 às 17:30

Obrigada, Elson. É mesmo essa a ideia 😉

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