Dos poucos turistas que chegam à Arménia, são ainda menos os que se dignam explorar o sul, nas proximidades das fronteiras com o Irão e o Azerbaijão, a não ser em incursões rápidas de um dia para visitar o famoso mosteiro de Tatev. Não sabem o que perdem: a cidade de Goris, encaixada num vale verde entre montanhas, e uma pequena Capadócia de torres e grutas recortadas na rocha são uma surpresa inquietante, que vale bem um par de dias. Quanto aos habitantes, parecem concentrar toda a humildade e gentileza que existe no coração dos arménios.
Goris, a hospitaleira
Fiquei mais tempo à espera que o táxi arranjasse seis clientes interessados em pagar a viagem entre Erevan e Goris, do que a percorrer o caminho entre a capital e a maior cidade do sul da Arménia. Esperava-me uma vilória acolhedora e muito arborizada, com ruas surpreendentemente simétricas entre si. Casas com varandas de madeira, uma praceta simpática, um jardim entregue a si próprio, lojas e carros a circular – a típica cidadezinha de província onde nos sentimos bem acolhidos, com vendedores um pouco menos tímidos que o habitual. A primeira abordagem foi por um taxista que – pasme-se! – falava inglês e inquiriu apenas se me podia ajudar. Claro que sim: precisava de um lugar para dormir com preços razoáveis, ao contrário dos hotéis onde tinha entrado, que tentavam elevar Goris a capital da Europa com as suas tarifas exageradas.
E foi assim que me apresentaram a Marita. A empatia foi mútua e imediata, apesar de não haver língua comum; ela falava russo e sabia três palavras de inglês, e no meu caso a proporção era inversa. Depois de me mostrar o quarto, de onde não tirei os meus pertences durante quatro dias, levou-me para casa, ofereceu-me café, descascou-me fruta, enfiou-me rebuçados nos bolsos.
No dia seguinte fiquei muito doente. A Marita vinha ver-me, trazer-me batata cozida e uma infusão de ervas que ainda me faziam sentir pior; se adormecia muito tempo pegava-me na mão, com medo que aquele sono fosse a morte a chegar de surpresa.
Um dia mais tarde já estava bem e com forças para passear nos arredores, fazer algumas compras e cozinhar o meu próprio arroz de legumes, tabulé, massa com tomate. Mas ela continuava a procurar-me, a perguntar o que queria comer. Uma mãe.
Perguntei-lhe se já tinha subido ao monte mais alto das redondezas, aquele onde ondulava a uma bandeira da Arménia fanada pelo tempo, e que devia ter uma vistaça sobre todo o vale. Nunca lá tinha ido. Fomos as duas, ela mais turista do que eu, a perguntar o caminho a quem encontrava até acabarem as casas e ficarmos numa paisagem fabulosa de chaminés de fadas, grutas e torres de pedra, esculpidas pela erosão feroz de um pais onde a neve dura meses. Esta era a “velha Goris”, habitada desde o século V e progressivamente abandonada a partir do século XIX. Por ali ainda estão um cemitério e duas capelas – uma delas com sinais de servir como estábulo, e não como local religioso -, que atraíram a minha amiga como ímanes. E ela vinha preparada: do bolso, retirou um par de velas, acendeu-as, e com a minha mão na dela, colocou-as numa cavidade da parede. Depois rezou, enquanto eu, ímpia, esperava que ela acabasse espreitando pelo canto do olho…
Acabei por completar a subida a solo, descobrindo mais recantos e vistas, tentando decifrar o arménio antigo das velhas campas espalhadas pelos montes, visitadas apenas por rebanhos de ovelhas sem medo. Ao fundo, os contrafortes do Cáucaso já acumulavam nuvens e neve, mas na “velha Goris” reinava o outono, com as árvores ainda iluminadas por cores incandescentes.
Tatev, o austero
Em Tatev, a cerca de 30km de Goris, fica uma das obras primas da arquitetura religiosa arménia – e a concorrência é bastante forte. Alcança-se por estrada ou pelo teleférico mais longo do mundo, que atravessa gargantas, aldeias e mosteiros abandonados, para além de uma grande floresta.
O mosteiro fortificado de S. Pedro e S. Paulo abriga duas igrejas de pedra dos séculos IX e XI, e está protegido pela UNESCO. No cimo de um pilar, uma magnífica cruz de pedra esculpida, ou khatchkar, representa a essência da arte religiosa nacional: cada khatchkar é único, geralmente em forma de estela ou pilar muito ornamentado, com figuras de animais, pessoas, flores, ou simplesmente inscrições na misteriosa língua arménia. Não são um símbolo da morte de Cristo mas a sua natureza divina, e também fazem parte da lista de Património Cultural Imaterial da UNESCO.
Mas não é apenas a monumentalidade histórica do mosteiro que atrai os visitantes. Recortado na pedra fria e austera dos montes, Tatev ocupa uma varanda sobre o vale e uma pequena garganta de onde escorre um rio; os bosques à volta dão-lhe um ar ajardinado, e as vistas abrangem os picos do Kharabak. No interior, as velas são continuamente acesas por grupos de arménios: escolas, famílias, locais, todos revivem um gesto antigo que vai escurecendo a pedra do interior quase nu, onde o eco dos passos atravessa o fumo. A única cor vem dos ídolos das paredes. Já abrigou cerca de seiscentos religiosos, mas agora são poucos os padres vestidos de negro e barbas compridas que por ali circulam, por vezes guiando grupos de respeitosos interessados. A visita acabou por ser abreviada por uma chuva teimosa que me empurrou de volta a Goris, mas nem as gotas de chuva que escorriam pela gaiola vidrada do teleférico conseguiram tornar feia a paisagem dos montes, com a sua coroa de pedra.
A Arménia é, de facto, um destino improvável sobre o qual não tinha grande curiosidade. Por isso, ainda hesitei em ler este artigo. Ainda bem que o fiz, porque adorei, especialmente a parte sobre a Marita.
Sofia, esse pequeno apontamento serve para mostrar que mesmo sem língua comum, a grande maioria das pessoas é boa e ajuda quem viaja sozinho… 🙂 Grande Marita! 🙂
Ah, que delícia ler sobre Goris e Tatev em português! Estarei lá daqui a um mês e seu relato me deixou ainda mais animada!
Como você foi de Goris a Tatev? Pelo que li a melhor saída seria ir de táxi. É isso mesmo?
Um abraço de sua leitora brasileira vegetariana. 🙂
Camila, de facto, é táxi que se vai até Tatev. Pode ir até à aldeia mesmo, mas perde a viagem no teleférico, que recomendo (mesmo a quem, como eu, tem medo de alturas! 🙂 ).
Terá é de encontrar o preço justo – eu tive a ajuda da Marita… 😉
Também tenho um apontamento sobre a Geógia no site, não sei se viu https://comedoresdepaisagem.com/georgia-outono/.
Vai ser uma viagem fantástica!!!! Curta muito! 🙂
Estou pensando em subir de teleférico e descer caminhando pelo outro lado, mas talvez seja melhor eu me decidir depois de chegar lá e ver a altura do morro. 🙂
É possível, mas os taxistas geralmente esperam até duas horas, e não é possível voltar a pé e visitar o mosteiro nesse tempo. Também pode ficar na aldeia junto ao mosteiro. É pequenina, mas há quem alugue quartos… assim pode explorar os arredores a pé.
Descobri o seu blog atraves do blog do FMG, e fiquei viciada nos seus artigos! Como ja andava a planear uma viagem sozinha pelo leste europeu e Turquia, sou capaz de estender à Arménia também, pois andei a pesquisar o budget diário parece semelhante à Turquia! Estou a começar um blog sobre as minhas viagens, está em inglês, para que a maioria dos meus amigos consiga ler, se quiser dar uma vista de olhos.. 🙂
Boa, mais blogues de viajantes independentes! A palavra vai-se espalhando… 🙂
Sobre a Arménia, achei-a um pouco mais cara do que a Turquia a nível das dormidas (esquecendo Istambul, claro!), mas é possível contornar o problema recorrendo às poucas guest houses que existem… por mim, valeu a pena! 🙂
Está na minha lista para 2015! Obrigada pelas dicas 🙂
Força, Rita! Vale a pena! 🙂
Lindo post! Pensei em visitar a Armênia no ano passado, mas cancelei os planos porque não tinha muitas referências sobre o país entre meus amigos viajantes, e nem de mulheres que viajaram sozinhas por lá. O seu post me encorajou. Vou retomar os planos de visitar este lindo país!
Ainda bem, Ana Cristina, porque vale mesmo a pena!
É impossível ler os teus textos e não ficar com vontade de partir. Assim não dá… 😀 😀
Obrigada, Francisco! Soou-me a elogio…era? 🙂
Oi, estou procurando informações sobre essa região e encontrei seu artigo e outros muito bons, contudo, fiquei com alguns dúvidas especificas, como: Como vamos de Yerevan para Gotis? Tem trem? Ou a melhor opção são os táxis?
Li que o pessoal por lá é meio louco no volante. Será que compensaria alugar um carro durante o período que estivéssemos no país? Ou está fora de cogitação dirigir por lá?
Você disse em seu artigo que a viagem de Gotis até Tatev é de taxi, mas perderíamos o passeio de periférico… Fiquei com um pouco de dúvida sobre isso.
Tatiane, a verdade é que pesadas todas as opções, a melhor é mesmo táxi, que nos permite parar para tirar fotos, chegar dentro do horário de funcionamento dos teleféricos…
Pode optar por tomar um autocarro até Tatev, mas regressa quando houver um de volta (quem sabe os horários?), ou então toma táxi só de Tatev para Goris.
De Yerevan para Goris, o único transporte público que encontrei foi táxi partilhado, que parte quando está cheio. As coisas podem ter mudado – fiz a viagem há dois anos – mas o melhor é mesmo consultar o posto de turismo em Yerevan – ou a receção do seu hostel, como eu fiz :). Prepare-se para gastar tempo com os transportes…
Quanto a alugar carro, não perguntei os preços porque não gosto de conduzir (dirigir). Sim, conduzem como loucos, mas isso é um problema em grande parte do planeta. 🙂
Vá com horários flexíveis e recolha informações localmente; o país está a mudar.