Bam, a bela

Lugares Improváveis

Um grande terramoto ocorreu no Irão em 2003, e uma das suas vítimas mais famosas foram as ruínas da antiga fortaleza de Bam. Conhecida por Arg-é-Bam, importante entreposto da Rota da Seda considerado Património Mundial da Humanidade pela UNESCO, a cidadela estava a ser restaurada quando a visitei, e é assim que a quero recordar: bela e quase irreal.

Arg-é-Bam, na Rota da Seda

Cheguei a Bam, na Rota da Seda, já de noite. A camioneta e depois um táxi levaram-me ao longo de um extenso e escuro palmeiral, cortado por um frio que me espantou. Como pode um palmeiral ser tão frio? As únicas coisas que conhecia sobre a cidade era a fama das suas tâmaras, que me ofereceram em Teerão – “de Bam, as melhores do mundo!” – e se derretiam na boca como açúcar até sobrar apenas um pequenino caroço, e também a sua famosa fortaleza, cuja imagem namorei anos em revistas de viagem, que guardei religiosamente até conseguir lá ir.

A manhã mostrou-me que as ruas da cidade, por onde circulava pouco trânsito, eram compridas e bordejadas de eucaliptos anémicos. O casario era baixo, as motorizadas e bicicletas maioritárias, as pessoas acolhedoras, sorrindo e atirando cumprimentos; a falta de conhecimento de inglês era em muito superada pela simpatia. Havia quem atirasse um thank you e acenasse com a mão, e quem dissesse hello very good; enfim, o importante era comunicar. As ruelas poeirentas cortavam o oásis em quadrículas verde-escuras onde se escondiam as casas, muitas delas ainda construídas com tijolos de adobe. De vez em quando via-se o ocasional paquistanês ou afegão, reconhecíveis pela sua roupa e boina típicas, e algumas mulheres passavam com os filhos pela mão, fazendo esvoaçar o tchador negro. Calma e pacata, Bam concentrava a sua beleza a três quilómetros do centro, na velha cidadela que nasceu antes do século XII.

Entre o fim do palmeiral e Dasht-é-Lut, o maior deserto do Irão, fica a grande fortaleza, Arg-é-Bam, que chegou a abrigar cerca de treze mil almas. E nenhuma fotografia, nenhuma descrição nos conseguia preparar para a sua beleza impressionante. Rodeada por uma muralha defensiva e encimada por uma torre que pertencia ao palácio do governador, a velha Bam era da cor da terra e esboroava-se aos poucos, voltando à terra donde se ergueu. Não fosse algum trabalho de reconstrução – um velhinho mostrou-me como amassava a terra argilosa com água e palha, fazendo depois tijolos com um molde, e deixando-os secar ao sol –, que permitia que se reconhecessem cúpulas, escadas e ameias, e ficaríamos na dúvida se teria sido a natureza a moldar estas paredes desiguais, estas ruelas labirínticas que levavam a pátios tortuosos, mesquitas e caravanserais que acolhiam as caravanas na Rota da Seda.

Passei um dia a explorar todas as esquinas abatidas pelo tempo, a cumprimentar e a posar para as fotos de alguns turistas iranianos, a respirar a luz amarelada de Bam. Numa hora de pausa fumei um ghalian (cachimbo de água) e comi uns bolinhos de tâmaras no café da cidadela, servida por duas mulheres divertidas que, em inglês, só sabiam dizer os preços inflacionados dos produtos que tinham. Sorvi a beleza do lugar em golos de chá antes de subir de novo às muralhas, a tempo de ver o sol escurecer o oásis, o fumo das casas a erguer-se sobre as palmeiras e os minaretes das mesquitas, enquanto do outro lado as montanhas carecas do deserto se recortavam num céu azul cada vez mais desmaiado. A última carroça passou lá em baixo na estrada e o zurrar longínquo dos burros foi desaparecendo. A meus pés, a cidadela ia mudando de cor.

Às primeiras imagens do horror, pensei que as casas baixas de adobe da cidade causariam poucas vítimas, nada de prédios a desmoronarem-se uns sobre os outros, nada de torres de tijolos a desabarem sobre os que fugiam para a rua. Mas depois veio o horror ainda maior dos números: mais de trinta mil pessoas perderam a vida sob os escombros de Bam. Os tijolos voltaram a ser terra e sufocaram os que abrigavam. Ainda não vi imagens do que resta da fortaleza, monumento raro do génio humano, feito da mesma terra das casas. Se pouco sobrou dos homens, nada sobra das suas obras. Da terra viemos e à terra voltamos – em Bam, o ditado é mais que certo.

Adaptado de texto publicado no magazine Fugas, do jornal Público


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Quando viajo faço sempre um seguro de viagem pela Nomads


Maria Inês Silva Novembro 15, 2012 às 20:52

Cada visita que faço fico a gostar mais dos comedores e das paisagens.
Obrigada por partilhares connosco coisas e comidas e sítios tão bonitos!

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Comedores de Paisagem Fevereiro 1, 2013 às 11:46

Não há nada mais gratificante (divertido, emocional, etc.) do que partilhar paisagens! É bommmmmmm!
E tens comido muitas paisagens?

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olga duarte Novembro 17, 2012 às 18:44

Mais um belo passeio

Obrigada,beijinho

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