Onde está o Xangri La?

Lugares Improváveis

Xangri La é sinónimo de paz e bem-estar; uma espécie de paraíso terrestre onde se pode viver uma vida longa e feliz. A ideia foi popularizada pela cultura hippie dos anos 60, transformou-se numa utopia de culto e foi rapidamente aproveitada pelo negócio do turismo.

Aldeia “perdida” no vale de Solu, Nepal

A origem do Xangri La

O livro Horizonte Perdido, do escritor britânico James Hilton, está na origem da ideia de Xangri La, que se transformou numa referência compreendida na maior parte do chamado “mundo ocidental”. No seu romance, uma história de aventuras com um certo suspense, um avião parte de Peshawar, no Paquistão, para se despenhar num “mundo desolado”, que “se encontrava a uma altitude de montanha” e “as montanhas que dele se erguiam eram montanhas acima de montanhas”. Milagrosamente, quase todos sobrevivem e são levados para o mosteiro budista de Xangri La por um grupo de “tibetanos robustos vestindo peles de carneiro, com chapéus de pele e botas de couro de iaque”. E assim começam umas “férias” forçadas para os quatro passageiros do avião. Mas apesar de todos sonharmos com este paraíso terrestre, parece que, quando o encontramos, só quem está preparado é que dele pode usufruir; assustados com um mundo tão perfeito, dois dos “eleitos” acabam por desertar, classificando-o de “prisão”, lugar “doentio e imoral”. Provavelmente é na procura deste mundo à parte, bem longe da civilização, que está todo o gozo da viagem, na fuga aos nossos pequenos infernos em busca do lugar ideal.

O “verdadeiro” mosteiro de Xangri La fica sobranceiro ao Vale da Lua Azul, “de surpreendente fertilidade”, onde “Culturas de diversidade invulgar” se desenvolviam. Mais acima levanta-se o Karakal, a “montanha mais maravilhosa da Terra (…) um cone de neve quase perfeito, de contornos tão simples como se tivesse sido desenhada por uma criança, e impossível de classificar no tocante a tamanho, altura ou proximidade”. No mosteiro vive em paz gente de diversas etnias e pontos do planeta, com uma imensa biblioteca – “Abundavam volumes em inglês, francês, alemão e russo, e havia quantidades imensas de escritos em chinês e noutras línguas orientais (…) diversas raridades, entre elas o Novo descubrimento de grao catayo ou dos regos de Tibet, de António de Andrade (Lisboa, 1626)”. Também existe um piano, gramofone, colecções de arte, aquecimento central e comida abundante ao dispor, mas o mais importante de tudo são as vantagens pessoais de quem ali habita: para além de viverem o triplo do tempo de um ser humano vulgar, não têm doenças e a paz entre todos é permanente. Não há polícia nem exército (“o crime era muito raro, em parte porque somente coisas graves eram consideradas crime, e em parte também porque toda a gente dispunha em quantidade suficiente de tudo quanto razoavelmente poderia desejar. Como último recurso, os servidores pessoais do mosteiro tinham poder para expulsar um infractor do vale – embora isso, que era considerado um castigo extremo e terrível, só muito ocasionalmente fosse imposto. Mas o fator principal da Lua Azul (…) era inculcar boas maneiras, o que levava os homens a sentir que certas coisas «não se faziam», e que se as fizessem a sua posição social baixaria.”).

Pratica-se o amor livre e o convívio entre várias religiões, já que a única crença prevalecente é a moderação. “Inculcamos a virtude de evitar excessos de todas as espécies – incluindo mesmo (…) excessos de virtude” – diz Chang, o Lama Superior do mosteiro. E “é tradição nossa, se me é permitido o paradoxo, não sermos nunca escravos da tradição. Não temos nenhumas inflexibilidades, nenhumas normas inexoráveis. Procedemos como nos parece mais adequado, guiados um pouco pelo exemplo do passado, mas mais ainda pelo nosso saber presente e pela nossa clarividência do futuro.”

Este fabuloso e invejável Xangri La, encarrapitado algures nas montanhas mais altas do planeta, bem isolado, para preservar intactos um equilíbrio e uma harmonia seculares, tornou-se na Meca de muitos ocidentais sedentos desta paz exótica, capaz de viajar milhares de quilómetros e gastar outros tantos dólares à procura do que não existe. Muito do turismo de montanha na Ásia nasceu desta fantasia. Hotéis, restaurantes, agências de viagem e lojas usurparam o nome, e todos os países possuidores de coordenadas minimamente aproximadas, ou de montanhas capazes de levantar a dúvida, se apresentaram como candidatos a detentores de “xangri las” escondidos nos píncaros dos montes, mas onde se pode aceder “quase em exclusivo” em viagens guiadas e bem pagas. Nepal e Paquistão surgiram na linha da frente, depressa ultrapassados pela China que, definitivamente ocupado o território tibetano, se propõe agora investir milhões na área que oficialmente autorizou a chamar-se de Xangri La. Situa-se na província do Yunnan, que já foi Tibete, mas há outras áreas, como a igualmente ex-tibetana província do Sichuan, que também reclamam o título.

Que Xangri La prefere?

Quem lê “Horizonte Perdido” cria uma imagem de paisagens de sonho, montanhas impressionantes e vales acolhedores onde vive gente feliz e hospitaleira. E quem conhece um pouco dos Himalaias, não deixa de imaginar um mosteiro tibetano construído no alto de uma inóspita montanha paquistanesa, que se levanta dos verdes e cultivados vales em socalcos do Nepal. Hilton fala no Tibete mas descreve lugares que não correspondem às suas paisagens desoladas; descreve o Karakorum (Paquistão), situa o Nanga Parbat, num dos extremos dos Himalaias, fala num cone perfeito de neve que faz lembrar o monte Diran (Paquistão), mas muito mais o Pumori, (Nepal/Tibete) ou o monte Kailas (Tibete). Mas seja no Paquistão, no Nepal ou no Tibete, uma coisa é certa: “Só há um Vale da Lua Azul, e aqueles que esperam descobrir outro pedem demasiado à natureza.” E como o lugar é tremendamente difícil de descobrir, podemos muito simplesmente escolher o nosso Xangri La favorito de acordo com as nossas preferências, nesta fabulosa e muitíssimo variada cordilheira.

Consideremos, por exemplo, o Nepal. Em nenhum outro lugar do planeta encontramos tais vales profundos e verdes, encimados por cumes brancos. “O imenso massif circundante formava um contraste perfeito com os pequenos relvados e jardins libertos de ervas daninhas, as casas de chá pintadas à beira do rio e as habitações de uma frivolidade de brinquedo”; ”Culturas de diversidade invulgar desenvolviam-se profusa e contiguamente, sem um centímetro de solo por amanhar” – a descrição assenta que nem uma luva neste país de montanhas lapidadas em socalcos cultivados com arroz, cevada e batatas. E não faltam as aldeias sherpas com os seus mosteiros budistas, como o de Tengboche, para completar o quadro.

Os bosques alternam com campos e casinhas brancas, onde crianças seminuas convivem alegremente com cabras e galinhas. Os socalcos verdes e bem cuidados estão polvilhados destas casas de um piso, enfeitados com cerejeiras nas zonas mais baixas e macieiras mais acima. O vale aprofunda-se e as montanhas crescem, transformando as aldeias em casinhas de brincar. Assobios de pastores e brincadeiras de crianças que vêm da escola são os únicos ruídos na imensidão das montanhas. A paisagem mantem-se assim, imponente, mas ao mesmo tempo delicada e discreta, com os seus silêncios verdes, bosques cheios de passarada, campos de cevada e casas convenientemente distribuídas por vales e encostas. Tudo é harmonioso e equilibrado, quase familiar – só os ribeiros tumultuosos, de um verde esbranquiçado e gélido, lembram que a neve e os glaciares não andam muito longe. Mas no Nepal, que está na mesma latitude que o Egipto, as temperaturas são relativamente altas e a “morada das neves eternas” – tradução possível da palavra Himalaias – só começa verdadeiramente acima dos 4.000 metros. A linha das árvores prolonga-se até aí, e existe uma grande variedade de coníferas, cedros e enormes rododendros que florescem em fevereiro. Durante o mês de Outubro, também as cerejeiras e as magnólias cor-de-rosa dão um toque primaveril às montanhas mais baixas.

No Tibete, mais do que algum outro lugar do planeta, invade-nos “como que um calor de satisfação por ainda existirem na Terra lugares como aquele, distante, inacessível, como que ainda não-humanizado”. Coroado pelo sagrado Kailas, um monte em forma de diamante onde a neve tem dificuldade em se agarrar, o planalto tibetano é o país do misticismo; a sua luz é mágica e cai sobre pastagens, dunas de areia branca, picos nevados e lagos turquesa, em focos de intensidade variada que furam um céu geralmente escuro. Um horizonte límpido e o recorte ousado das montanhas, cujos picos parecem emanar “um brilho frio, supremamente majestosos e remotos”, remetem-nos para outro planeta ou, pelo menos, outra dimensão, onde numa encosta mais distante se pode ocultar um mosteiro muito especial… E “Muito ao longe, no limite extremo da distância que a vista alcançava, sucediam-se as cordilheiras de picos nevados, engalanados de glaciares e como que a flutuar em imensos mares de nuvens.”

Neste imenso território, onde há gente, há um mosteiro. Enormes e imponentes, abrigam monges de aspecto sábio e rigoroso, escondendo na penumbra enormes bibliotecas compostas por centenas de rolos impressos com os ensinamentos de Buda. Apesar do seu aspeto ser tão selvagem e rude como o seu habitat, os tibetanos parecem fazer parte de um mundo muito mais puro do que o nosso, e os conhecimentos guardados pelos lamas foram, sem dúvida, fonte de inspiração para o mosteiro imaginado por Hilton.

Palácio de Karimabad, vale de Hunza, Paquistão

Mas de todos os “locais-candidatos”, o que mais facilmente se pode comparar com o Vale da Lua Azul é, sem dúvida, o Vale de Hunza, no Paquistão, constituído por vales suspensos e longos, cordilheiras “como uma fiada de dentes de cão”, que formam a “fortaleza gelada do Caracorum”, rios que descem dos glaciares e dão vida aos campos minuciosamente cultivados – mesmo a pirâmide branca do monte Diran, vista de Karimabad, pode ser identificada com o Karakal. Alguns socalcos abrigados estão cobertos de hortas com legumes, choupos e árvores de frutos como macieiras, damasqueiros e amoreiras. O “vinho” que se bebe em Xangri La pode bem ser o licor de caroço de damasco, que ainda hoje aqui se produz. Até a velha fortaleza de Baltit, no cimo da aldeia, com mais de seis séculos e de origem desconhecida, tem uma arquitectura obviamente aparentada com a tibetana. Mosteiros budistas, é que já não é possível encontrar: o budismo passou por aqui a caminho da China, onde floresceu, mas em Hunza teve vida mais curta e a esmagadora maioria da população é agora ismaelita, ramo islâmico especialmente aberto à modernidade. Acolhedores e hospitaleiros, são das poucas comunidades no Paquistão que vêem com bons olhos e encorajam o turismo. Para além disso, os hunzakuts, como são conhecidos os habitantes de Hunza, sempre foram conhecidos pela sua longevidade – pelo menos enquanto o velho hábito de comer apenas frutos crus durante o verão se manteve.

Depois de viverem em plena Rota da Seda, durante muito tempo importante passagem para bens e, sobretudo, cruzamento de culturas orientais e ocidentais, o vale quase perdeu o contacto com outras civilizações. Isolados neste vale paradisíaco cercado por uma cortina de montanhas de aspecto intransponível, os hunzakuts foram-se transformando no mito que terá estado, provavelmente, na origem de outro bem mais conhecido: um paraíso terrestre que ainda ninguém conseguiu encontrar, a que chamamos Xangri La.

Quem era James Hilton?

James Hilton nasceu em Leigh, Inglaterra, em 1900. Viveu em Londres, onde estudou história e literatura inglesa, e começou a escrever e publicar artigos de jornal e romances com apenas dezassete anos de idade. Colaborou sempre com a imprensa escrita e alcançou definitivamente a fama nos anos 30 com dois dos seus romances, nomeadamente “Horizonte Perdido”. Viveu nos Estados Unidos, onde trabalhou como guionista em Hollywood, e é na Califórnia que acaba por morrer, em 1954.

Pesquisas relativamente recentes mostram que Hilton foi buscar a sua inspiração a artigos publicados na National Geographic, entre 1920 e 1930, por um botânico austro-americano de nome Joseph Rock, que andou pelo Tibete estudando a flora local. O resto colheu-o em informações soltas sobre as montanhas do Karakorum e os seus vales escondidos e prósperos, que ainda faziam parte do império britânico. “Horizonte Perdido” foi publicado em Portugal pelas Edições Europa-América.

Texto publicado na revista Rotas & Destinos


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olga duarte Setembro 21, 2012 às 9:52

Bela maneira de começar meu dia…
Que paz,que lindas fotos!

Obrigada
bjsssss

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ana Setembro 24, 2012 às 13:09

Agradeces pelo começo do dia, e alguém agradeceu pelo fim do dia… é a magia do Xangri-La!

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Anabela Tomás Setembro 23, 2012 às 23:36

Imagens e texto que nos dão paz e são harmonia em final de dia cinzento.
Bigada, ana!

Beijos
Anabela

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ana Setembro 24, 2012 às 13:08

Fico triste pelo teu dia cinzento…
Mas é curioso como há duas pessoas a agradecerem pelos descanso dos olhos, uma ao fim do dia e outra no começo!
O Xangri-La é mesmo isso, não é?

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